11 de fevereiro de 2006

O dia em que se perderam anos


“Pela cor do fumo, deve tratar-se de um incêndio”, comento para o meu motorista, ao ver uma pequena nuvem negra, estranhamente alta, ao sul de Manhattan, caminhando de Oeste para Leste. Circulamos no FDR drive, a via rápida que acompanha a margem ocidental da ilha que é o coração de Nova Iorque. Devem faltar três ou quatro minutos para as nove horas, início da reunião dos Representantes Permanentes dos países da União Europeia, que tem lugar todas as terças-feiras num prédio em frente da ONU. À entrada, o meu colega francês, Jean-David Levitte, fala-me de um incêndio no World Trade Center. O inglês, Jeremy Greenstock, que vem atrás, está melhor informado: um avião colidiu com uma das torres. Sem excluir nada, o acidente é a hipótese implicitamente assumida por todos como mais plausível.

Já no 6º andar do edifício, a caminho da reunião, vemos imagens na televisão: chamas e fumo. Minutos depois, um colaborador meu, que permanece junto ao televisor, vem chamar-me: um outro avião embateu na segunda torre. Regresso à sala, onde os trabalhos já começaram, e informo os colegas ao meu lado. Trata-se, sem dúvida, de atentados, mas não temos a menor ideia sobre o tipo de aviões utilizados. Porém, não nos passa pela cabeça que os incêndios não possam ser debelados, embora assumamos que deva haver um número importante de vítimas. O colapso das torres não é sequer, naquele momento, hipótese imaginável.

Vi as torres do World Trade Center, pela primeira vez, em finais de 1972, na minha primeira visita a Nova Iorque. Fui ao topo de uma delas três vezes, a última das quais em Junho de 2001, com o meu Pai. Na noite de ontem, o José Manuel dos Santos esteve a jantar no “Windows of the World”, o restaurante no alto de uma das torres, e telefonou-nos durante a tarde a anunciar o evento. Ainda nessa mesma noite, cerca das 11 e meia, ao regressar do lançamento oficial do jornal “24 Horas”, em Newark, o meu motorista convenceu-me a ir pelo Lincoln Tunnel (eu havia-lhe sugerido irmos pela Washington Bridge, para fugir ao trânsito), dado que estava uma noite excelente, o que permitia uma vista gloriosa das torres iluminadas – fico a dever ao Ismael essa derradeira perspectiva do skyline de Manhathan.

Numa olímpica inconsciência, a reunião dos embaixadores comunitários prossegue, tendo a “Cimeira da Criança” na agenda de prioridades. Cerca das nove e meia, um papel circula: um terceiro avião ter-se-á despenhado no Pentágono. Surpreendentemente, a presidência da União Europeia não toma a iniciativa de suspender a reunião e nenhum de nós o sugere. A reunião acaba às 10 horas. Estava previsto que o “sino da paz”, oferecido em tempos pelo Japão à ONU, tocasse no seu jardim, como é da tradição, para anunciar a data de início da nova Assembleia Geral anual, a ter lugar precisamente nesse dia. Saio da sala com a colega dinamarquesa e com Levitte, a caminho da cerimónia. Comentamos, com generalidades, a gravidade já pressentida dos acontecimentos.

Chegados à rua, damo-nos conta que o mundo tinha, entretanto, mudado, muito mais do que nós supúnhamos. Havíamos estado numa patética redoma durante a última hora. À distância, tenho que confessar que não fico nada orgulhoso por ter participado nesse exercício de cegueira colectiva.
aH
Verificamos que o edifício das Nações Unidas está já praticamente evacuado. A circulação na 1ª Avenida foi suspensa. As pessoas param e sentam-se nos passeios, com caras de espanto e de inquietação.

Dirijo-me à Missão de Portugal, na 2ª Avenida, a 200 metros de distância. A maioria dos funcionários está na sala de reuniões, onde há um aparelho de televisão. A situação agrava-se a olhos vistos, os incêndios não parecem controláveis e a expectativa de haver muitas vítimas é cada vez mais clara. A consternação e a emoção são gerais, os comentários interrogativos sobre o futuro são crescentes e há lágrimas em muitos olhos. Que mais pode acontecer? Que outros riscos existem? Soube-se, entretanto, do quarto avião, despenhado na Pensilvânia.

Fecho-me só no gabinete, para pensar um pouco no que fazer, com a CNN em fundo. A pausa dura apenas escassos minutos. No meio do ambiente de tensão que se vivia, é-me anunciada a chegada do Embaixador da Islândia. Volto a protagonista de uma cena quase surrealista. Como havíamos combinado dias antes, vem pontualmente às 10 e meia ... para discutir a questão da rotação de candidaturas na Comissão dos Direitos do Homem! Delicada mas penosamente, deixo-o iniciar a conversa, com a cabeça já algures. À terceira ou quarta interrupção por telefonemas, ambos assumimos, finalmente, que o ambiente não está para business as usual e concordamos em adiar o encontro.

Entretanto, a primeira torre cai. A dimensão da tragédia adensa-se rapidamente. A perspectiva de cidadãos portugueses estarem entre as vítimas (que eu, um tanto inconscientemente mas com infeliz precisão, já digo para uma televisão portuguesa que podem ser milhares) mobiliza, como é natural, os inúmeros contactos feitos pela comunicação social nacional. Na realidade, nada se sabe por ora. Em Lisboa ou Nova Iorque, todos somos simples membros da “geração CNN”. Nas minhas intervenções, com voz nas rádios e nas televisões nacionais que me procuram, tento adoptar um tom de procurada serenidade, assumindo sempre que, em qualquer caso, nunca haverá muitos nacionais portugueses envolvidos (recordo ter verificado que as visitas de turistas não se tinham ainda iniciado, à hora dos atentados). Remeto as precisões para o Consulado-Geral e para a embaixada em Washington, mais por uma questão formal do que pela convicção de que possam saber algo mais do que eu.

Os telefonemas de Portugal sucedem-se: os nossos familiares e a comunicação social. E também o Presidente da República, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e o Secretário-geral do MNE – os representantes oficiais portugueses que nos contactam a manifestar a sua simpática preocupação pelo nosso bem-estar. Por uma avaria da empresa dos telefones, com a central junto às Torres, que demoraria muitos dias a ser rectificada, vamos ficando sem linhas de acesso ao exterior, o que nos obriga a aproveitar as chamadas recebidas para pedir que sejam transmitidas mensagens de acalmia aos nossos familiares. Aproveito uma conversa com uma jornalista do Expresso para pedir que seja contactado o meu Pai. Nunca lhe agradeci o modo delicado e sereno como o fez.

Sou informado que as escolas em Nova Iorque estão a encerrar e digo aos funcionários com filhos para irem para casa. Pouco depois, corre a notícia que a ilha de Manhattan vai ser isolada; os restantes funcionários que vivem fora da ilha – a grande maioria do pessoal administrativo - são autorizados a regressar rapidamente às suas casas, onde acabarão por ficar vários dias, dada a permanência das restrições.

As ruas, antes com imensas pessoas em conversas que se adivinham de catárese colectiva, começam agora a ficar vazias e silenciosas, se excluirmos as sirenes de ambulâncias e dos carros de bombeiros, mas essas já parte do cenário acústico novaiorquino normal. Cada vez se vêem menos viaturas particulares. As restrições de circulação anunciam-se progressivamente rigorosas.

Com o pessoal administrativo e os funcionários com família já fora, a Missão está quase deserta. Os poucos que ficamos, estamos de piquete aos telefones que ainda funcionam - do embaixador ao Conselheiro Militar, num ambiente que se vai prolongar por vários dias. Às 7 da tarde (meia-noite de Lisboa), dou ordem para encerrar a Missão. Só então noto que não comi nada desde manhã.

Regresso a casa, onde a minha mulher passou o dia, como todos nós, em frente do televisor, o que vai ser a nossa sina nos dias que se seguirão. Acabará por ser ela a descobrir, através da informação de uma cadeia de televisão, que ambos, precisamente na 6ª feira e o sábado anteriores, havíamos pernoitado no hotel de Boston que foi utilizado pelos responsáveis de um dos atentados - o “Westin Hotel”. Confesso que não pude evitar uma viagem retrospectiva, embora sem sucesso, pela memória das caras que encontrámos nos corredores.

As imagens das torres em chamas continuam a ser repetidas à exaustão em todos os canais, os comentários dos especialistas esgotam o universo das hipóteses, os súbitos “peritos” na actualidade iniciam os seus meses de glória, muitas vezes num mero débito de platitudes e de lugares-comuns.

A onda de comentários que as televisões nos traz não deixa margem para dúvidas sobre o que aí vem. O desespero, a raiva e a vontade de vingança sobrepõem-se, sem apelo, a qualquer juízo de racionalidade. Não estou surpreendido. Falar simplesmente de justiça, ligar circunstâncias ou tentar enveredar pela explicação de algumas coisas passou, de repente, a ser incorrecto, porque não joga com o discurso maniqueu em que se apoia o jingoísmo já dominante. Dias mais tarde, vou descobrir que, na comunicação social portuguesa, o tom dos “especialistas” domésticos vai também, quase sempre, no mesmo sentido. A imprensa trar-nos-á, durante as semanas seguintes, alguns exemplares de ferozes exegetas críticos da heterodoxia. As Nações Unidas também não vão ficar imunes, por algum tempo, a esta vaga.

Depois de muitas horas passadas a reagir e a lançar hipóteses “a quente”, procuro parar um pouco para pensar. Alinho os factos, tento deduzir as consequências imediatas nas várias dimensões do problema e perspectivar linhas para participar na reacção colectiva que terá que ter lugar no âmbito das Nações Unidas. Estou praticamente sem comunicações com Lisboa, mas é óbvio que não necessito de quaisquer instruções para assumir posições nesta matéria em nome de Portugal.

Deito-me já de madrugada, depois de algumas horas de zapping televisivo. Foi um dia longo e pesado, um dia bem triste. Um dia que fez perder ao mundo bastantes anos. Agora, tudo vai ser mais difícil.

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