5 de agosto de 2005

Palavras Liminares

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Conheci António Pinto da França à sua chegada a Luanda, como novo embaixador, há vinte e tal anos. Recordo ter-lhe então contado o episódio da mulher de um alto dignitário português que, meses antes, havia tentado cortar, de uma planta artificial que ornamentava a sala VIP onde o recebíamos, “um raminho para pôr lá no quintal”... A gargalhada franca com que acolheu a historieta, que era, em si mesma, um teste ao humor do novo chefe e um atrevimento face ao mundo oficial que ambos representávamos, selou entre nós uma imediata cumplicidade, assente no culto muito sério da ironia, que dura até hoje, agora também num registo de sólida amizade.
Nos anos seguintes, trabalhei de perto com António Pinto da França, a quem eu sempre teimo em chamar “embaixador”, tendo ele já desistido de o evitar. Fui testemunha privilegiada do seu entusiasmo na aventura que foi o trabalho da embaixada em Angola nesse período delicado, que ele retratou muito bem no seu anterior diário.
As tertúlias criativas em que se convertiam os fins de tarde no seu gabinete, onde se misturavam o cepticismo do José Stichini Vilela, a ironia do Fernando Andresen e a ingenuidade seca do Júlio Vasconcelos, ficaram-me para as memórias. Discutíamos sobre os rascunhos dos seus telegramas, escritos e rasurados em tinta castanha, que se misturava com os fiapos do tabaco caído do cachimbo, e que eram o sumo das suas progressivas reflexões sobre um quotidiano político complexo e contraditório, que a sua sensibilidade o fez conhecer rapidamente. Retenho a paciência com que aturava a nossa diversa heterodoxia, eufemismo para irritados espíritos de contradição potenciados pelos trópicos, com que mediava as nossas diferenças e teimosias e como, afinal, sabia extrair o melhor de cada um de nós. E ainda como conseguia, ao final dos dias e semanas, encontrar frescura de espírito para divertidos exercícios colectivos, de memória ou imaginação, de riso sobre os outros e sobre si próprio.
Sendo uma figura grada do serviço diplomático português, António Pinto da França não deixa, contudo, de ser um diplomata algo atípico. Desde logo, por escrever, coisa que muitos não sabem, outros não fazem e a maioria nem sequer ousa tentar. Mas, além disso, o seu estilo profissional e pessoal sempre se afastou muito do de alguns “mortos de sobrecasaca”, como diria Drumond de Andrade, que se pavoneiam, de sorriso pateta ou ar de gravidade inútil, pelos claustros das Necessidades, prenhes de vazio e de intriga. O seu empenhamento e dedicação ao serviço público, bem como a sua inexcedível lealdade profissional, que todos reconhecem, são qualidades que hoje se lhe colam ao nome. Para além disso, a carreira deu-lhe – e sente-se nos textos que ele lhe está grato por isso – o ensejo de ganhar uma certa perspectiva face a um Portugal que, não o sufocando, claramente sempre o angustiou. Isso nota-se, por exemplo, no seu contido desespero perante a dificuldade crónica em conseguir, à distância, mobilizar Lisboa para algumas coisas básicas e de meridiana evidência.
Também neste diário da Guiné-Bissau, António Pinto da França, até pela coragem para o escrever e publicar, se revela um diplomata diferente. Mas não nos iludamos a ler este livro como o encadernar do deslumbramento do jovem que, ainda na casa dos 30 anos, assume em Bissau a sua primeira embaixada. Por uma daquelas coincidências que talvez o não sejam verdadeiramente, o autor tem uma carreira profissional em que, com uma isolada excepção, foi sempre chefe de si próprio, responsável único nos postos onde foi colocado. Esta circunstância, que em conhecidos casos tem sido receita para o desastre, é, em Pinto da França, resultado e indutora de uma maturidade profissional precoce, que este texto reflecte especialmente bem.
Comomprofissional, ele assume um automatismo de comportamento que revela saber interpretar, a cada momento, o que pressente ser o interesse português a defender. Naquilo que é uma sina constante da carreira diplomática portuguesa – a necessidade de levar ao extremo esse “pressentimento” do interesse nacional, pela proverbial ausência de instruções de Lisboa ou pela necessidade de as iludirmos pela sua clamorosa inutilidade – Pinto da França recorre ao seu excepcional bom-senso, o qual, como é sabido, constitui à arma mais eficaz com que os diplomatas portugueses, quando a possuem, se desenvencilham em situações delicadas. Fá-lo de um modo que, visto à distância temporal, parece fácil e segue linhas que se apresentam como óbvias. Porém, convém ter presente a sensibilidade específica que marca a gestão de uma presença oficial portuguesa num PALOP, em tempos de feridas pós-coloniais ainda pouco saradas, com uma classe política local à procura do seu espaço de afirmação, que infelizmente nunca viria a encontrar.
Na Guiné-Bissau daquele tempo, Pinto da França não foi nunca um diplomata cínico. Dá permanentemente o benefício de dúvida aos seus interlocutores, procura interpretar as suas atitudes como a busca, às vezes desajeitada e hesitante, de um caminho que o embaixador português compreende e, quase sempre, respeita com sinceridade. Reflecte, com consideração rara, sobre as tensões e contradições de uma sociedade onde as hierarquias tradicionais representam um esqueleto que nenhuma superestrutura institucional pode substituir, antes a deve incorporar habilmente na sua matriz, como condição básica de sobrevivência para qualquer modelo sustentado de poder. E, com gosto, qual antropólogo amador, perde-se nessas teias humanas que, na África, ligam o passado a todos os presentes, sem conta de países ou fronteiras, através daquilo que representa o seu próprio fascínio pelos mundos mágicos e subliminares, que tocou na Ásia e que o Brasil lhe confirmou.
Como em textos anteriores, de que o diário dos tempos de Angola é exemplo notável, António Pinto da França tem as pessoas no centro da sua escrita. Alguns dirão que, aqui ou ali, o recorte das gentes que nela trabalha pode ser algo cruel e até impiedoso. Há, contudo, que perceber que estamos perante um hábil e refinado caricaturista, alguém que faz ressaltar, quiçá com o exagero pontual de regra, os traços mais salientes das figuras a que se dedica. Se o leitor notar bem, não deixa, quase sempre, de estar perante um desenho onde se vislumbra alguma ternura, que às vezes se revela pela colocação da personagem num cenário de passado ficcionado, que confere colorido e enriquece o contexto em que as figuras se movimentam no presente.
A boa escrita é isso mesmo e Pinto da França, numa linguagem solta e ágil, consegue situar-nos na movimentação de tais figuras, no seu quotidiano frágil, numa ex-colónia onde elas tecem o seu tecido precário de relações, um mundo de aventuras menores, de pequenas tragédias pessoais e de futuros de incerteza, que o autor aligeira com os achados dos seus excessos na descrição. Só quem passou por África em tais tempos conseguirá perceber como a realidade se aproxima imenso do fresco que António Pinto da França nos pinta neste livro e que, para o entender e para lhe sobreviver, na perpectiva de uma embaixada que é sempre vista de viés do exterior, se torna essencial interiorizar uma imensa dose de ironia.
Interessante também é o modo como Pinto da França analisa colegas estrangeiros com quem se cruza, bem como os respectivos cônjuges, recortando-os na moldura idiossincrática das respectivas carreiras, onde se projectam leituras preconceituosas sobre realidades locais que forçosamente lhes escapam. Para um profissional do mesmo ofício, é delicioso ver alguns espécimens da fauna diplomática dissecados por um bisturi inteligente, que põe à vista a sua verdadeira face, que lhes abre as defesas do formalismo e os expõe na sua natureza frequentemente pindérica e risível.
Há também na escrita de António Pinto da França um prenunciado mundo tributário da adolescência, que se insinua e se revela em alguns sinais, mas que permanentemente teima em ficar à porta da aventura que espreita. Esta é sempre controlada, vivida intimamente, mas que se sustem na soleira do possível, sem colocar em risco a dignidade formal da função. Na observação do exterior que o cerca, Pinto da França transfere para ele toda a carga subversiva que, pessoalmente, não ousa romper. É um esforçado jogo consigo próprio, do qual só sai a ganhar o diplomata.
Nesse quotidiano íntimo, que criou para si mesmo, nota-se uma pertinaz tentativa de perfeição na acção, uma ambição de excelência, que nunca é poluída, antes é enriquecida, pela convivência com mundos algo bizarros ou mesmo marginais, saídos do Portugal conflitual que o pós-25 de Abril exportou, em registos de ruptura, esperança e alguma mediocridade, com destino às pátrias em construção turbulenta no antigo império, uma espécie de retornados em sentido inverso.
A escrita de Pinto da França é, em si mesma, uma fotografia inteligente, nítida, em alto contraste, das ambiguidades desse tempo do Portugal que se sucedeu à Revolução de Abril. No olhar franco e honesto com que observa tal mundo coexistem, simultaneamente, uma nostalgia do que poderia ter sido um país diferente e – sempre – um grande esforço para entender o que se passa à sua volta e conseguir ser construtivo para, à sua medida, fazer o melhor possível naquilo que no destino lhe calhou. António Pinto da França vê os embaixadores lusos nos PALOP, de certo modo, como destinatários naturais da herança, que lê benevolamente como um superávite positivo de afectividade, que terá sobrado da aventura colonial e que, não obstante a ruptura histórica, há que tentar preservar, a todo o custo.
A ironia, a crítica e o desencanto que, muitas vezes, deixa transparecer no seu texto não são, contudo, suportes de uma qualquer acrimónia. António Pinto da França sobrevive, nesse mundo que o incomoda e a que reage com alguma irritação, pelo recurso hábil a um sólido imaginário. Ele representa um país, e representa-se nesse país, que sabe ser uma ilusão melhorada do Portugal oficial que existe por detrás das ordens que recebe, e escuda-se sempre, com um inquebrantável optimismo, na sua visão do que Portugal poderia ser: um país de bem, tomado por uma alegria que não seja apenas breve, capaz de sustentar o sucesso, terra de tradições saudáveis, de palavra respeitável, pátria suculenta de sopas de favas e de primas em férias, de caturreiras à lareira das ilustres casas, pelas cidades e as serras da memória feliz de tempos que porventura também nunca existiram, a não ser na imaginação de quantos, saudavelmente, ainda acreditam num certo Portugal eterno. Como António Pinto da França.
(Prefácio ao livro "Diário da Guiné", de António Pinto da França)

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