27 de janeiro de 1997

Nos 10 anos da adesão

Uma constatação de meridiana sensatez não poderá deixar de concluir que a integração de Portugal na Europa comunitária representou uma das opções mais relevantes que os decisores políticos nacionais tomaram neste século. Essa opção, pelas suas consequências profundas no próprio perfil externo do país, acabará por erigir-se como um elemento determinante no posicionamento futuro de Portugal na cena mundial.

Quando hoje assistimos à exploração, por vezes com laivos demagógicos e populistas, de um discurso crítico sobre alguns problemas que se fazem sentir em áreas do tecido económico nacional, temos que ter a serenidade para responder pela força de uma argumentação que assente no efeito normalizador da opção europeia na vida democrática portuguesa, na cultura de modernidade e renovação que se implantou entre nós, no salto de qualidade global de vida que só foi possível através da nossa participação, no momento certo, no processo integrador do continente.

O saldo da opção europeia é hoje francamente positivo e, se estamos plenamente solidários com quantos se defrontam com dificuldades sectoriais que só mediatamente se podem ligar a efeitos da integração - e com eles e para eles procuramos trabalhar para minimizar tais efeitos -, não podemos deixar de recordar que nenhuma outra opção teria tido condições de melhor proteger esses mesmos interesses e que é ainda no quadro europeu que se poderão encontrar as alternativas e as respostas para a superação desses problemas.

Teremos de convir que o largo consenso pró-europeu que se verificou nos anos imediatamente após a adesão assentou numa leitura frequentemente quantitativa dos benefícios decorrentes da aplicação dos fundos comunitários, os quais, ampliados por uma conjuntura internacional favorável, tornaram os seus efeitos muito visíveis em toda a sociedade portuguesa.

Terá então havido um excesso de optimismo, não moderado por um
a
ponderação de que toda a moeda tem sempre duas faces e que seria pedagogicamente importante preparar os dias do inevitável refluxo.

Com efeito, com a entrada em vigor do Mercado Interno, com a incapacidade manifesta de certos sectores de se reconverterem e aproveitarem de forma plena as ajudas recebidas, passou-se à constatação pública de alguns impactos sectoriais inevitáveis, agravados por um surto inescapável de mundialização económica, que veio dar um alento muito particular à crescente preponderância na União de interesses comerciais fortemente liberalizadores.

Sectores importantes da economia portuguesa acabaram por se deixar fixar num cenário de estagnação competitiva, que os colocou em contra-ciclo com a matriz central do sector produtivo continental, contribuindo para a sua marginalização no jogo dos equilíbrios que projectam a União no plano económico externo. Se a isso somarmos uma patente hesitação oficial na definição das linhas de internacionalização dos sectores mais capazes de se afirmar no comércio externo, estará criado o panorama com que hoje nos confrontamos.

Torna-se, assim, essencial que assumamos uma visão equilibrada do processo europeu, única forma de podermos manter um discurso simultaneamente crítico e sereno sobre a integração do nosso país nesse mesmo processo.

É preciso percebermos que, tratando-se de uma opção estratégica que afecta todo o tecido social, há forçosamente como que compensações intersectoriais a que se não pode fugir, com tudo o que isso implica de euforias e frustrações. E há dimensões, no plano da expressão política do país e da fixação de modelos culturais que se reflectem sobre as populações a prazo não imediato, que têm que ser tidos em conta permanentemente. Não entender isto, procurando sectorializar a realidade e o modo como esta evolui, é fixar as árvores deixando escapar a perspectiva da floresta.

Em toda a parte onde se construiu, o projecto europeu afirmou-se sempre como um processo complexo, onde os diversos efeitos se compensam. Também em Portugal tem sido assim e continuará a ser. A aposta essencial é garantir que esse processo se consolide sem provocar, nas diversas etapas, efeitos de ruptura socio-económica que possam alienar determinados sectores nacionais. É procurar assegurar que as disfunções pontuais possam encontrar elementos de compensação e recuperação em outras dimensões da actividade do país, absorvendo os choques e partindo para outras alternativas.

A instauração, em boa parte da nossa administração, de uma atitude de maior rigor e profissionalismo é um dos efeitos mais evidentes da nossa integração europeia. Muitos eram, antes de 1986, os que colocavam dúvidas quanto à capacidade de Portugal para enfrentar, com a necessária eficácia, as exigências técnicas da multiplicidade de reuniões comunitárias que se avizinhava e a responsabilidade para fazer face às exigências em termos de exercício de iniciativa e gestão que tal desafio acarretava.

A experiência provou tais receios infundados. Portugal não só correspondeu em termos de assuntos correntes da Comunidade como desempenhou particularmente bem aquele que, à época, foi o primeiro dos grandes desafios da administração pública portuguesa - a Presidência das Comunidades Europeias, no primeiro semestre de 1992.

Mas a integração teve outros efeitos. Portugal sofreu um inegável processo de desenvolvimento económico, ao qual não tem sido alheia a capacidade demonstrada a nível da absorção dos fundos, com efeito significativo no crescimento do produto e com consequências positivas na estabilização do nível de emprego.

De facto, a aplicação da política de Coesão Económica e Social deu uma oportunidade única a Portugal de se equipar em moldes modernos, de que o efeito mais visível foi a criação de importantes infra-estruturas, nomeadamente no domínio dos transportes e comunicações, e um impulso relevante em matéria de qualificação profissional.

A tudo isto poderíamos juntar outros significativos estímulos operados na economia nacional. A consagração do acesso de agentes privados a sectores que vinham sendo mantidos nas mãos do Estado motivou os operadores internacionais a interessarem-se por um país que se abria e criou condições para a afirmação de grupos nacionais sólidos, apoiados na segurança criada por um clima político que se solidificou em torno de projectos compatíveis com a prevalência dos valores do mercado. Um exemplo bem sucedido foi seguramente o do sector financeiro, onde a abertura ao mercado levou a um processo de inovação que conduziu a um acréscimo substancial da respectiva capacidade concorrencial.

No que diz respeito ao seu posicionamento internacional, o facto de fazer parte da União Europeia tem concedido a Portugal a possibilidade de afirmar com maior visibilidade os seus interesses e assegurar com maior sucesso a defesa das suas opções estratégicas essenciais.

Face à impossibilidade de se ser exaustivo, julgamos, por último, dever sublinhar a estabilização política do país e a consolidação do seu sistema democrático como o contributo, à primeira vista menos perceptível mas seguramente o mais importante, que a pertença à União Europeia constituiu para o nosso país. O cumprimento deste objectivo era, aliás, condição primeira para atingir todas as outras finalidades, com vista ao desenvolvimento económico, cultural e social.

Para as novas gerações, para quem a vida em democracia é hoje algo de natural e inquestionável, convém deixar claro que os valores comuns de liberdade e de respeito pelo Estado de direito é algo que a pertença às instituições comunitárias acabou por cimentar, e que veio a somar-se à recuperação colectiva desses valores feita a partir de 25 de Abril de 1974. E convirá também lembrar, por ser de justiça, que os que politicamente tomaram a iniciativa de levar Portugal para a Europa comunitária foram, sem dúvida, dos que antes mais lutaram para a instauração no país desses mesmos valores.

Quanto aos aspectos vistos publicamente como mais negativos e atribuídos à integração europeia, creio necessário, antes de mais, aferir da justeza em se responsabilizar tal opção por esses impactos.

Em primeiro lugar, a realidade demonstra que, durante a primeira década de integração, o país beneficiou de importantes mecanismos e programas de apoio tendentes à reestruturação e modernização do seu tecido económico, em particular com vista à sua adaptação ao Mercado Interno. Terão estes apoios sido aproveitados da melhor forma ? Um juízo de razoabilidade levar-nos-á facilmente a concluir que importantes áreas da indústria, da agricultura e do sector pesqueiro portugueses não se terão preparado para a crescente concorrência mundial, apresentando hoje debilidades estruturais altamente limitadoras da sua capacidade competitiva.

Em segundo lugar, é importante interrogarmo-nos sobre qual teria sido o cenário, face à realidade económica internacional, caso Portugal não fosse hoje membro da União Europeia. Desde logo, todo o conjunto de apoios atrás referido nunca teria existido. E será que o nosso país teria conseguido negociar, no âmbito do “Uruguay Round”, a manutenção de um sistema específico de defesa temporária do seu sector têxtil, face à concorrência de produtos com custos muito mais baixos provenientes de países exteriores à União ?

Julgamos que não há argumentos sérios que permitam sustentar uma política isolacionista, que forçosamente nos colocaria ao lado de quantos batem hoje à porta da União Europeia. Mas a sobrevivência, embora disfarçada, desse mesmo discurso em sectores influentes da sociedade portuguesa é a prova de que não conseguimos ainda fazer passar a mensagem das virtualidades essenciais do projecto europeu.

Para todos quantos acreditam na Europa, este é um desafio para os difíceis anos que se avizinham. E esses tempos serão, ao que tudo aponta, muito diferentes.

Contrariamente ao que aconteceu durante as décadas precedentes, os últimos anos conferiram ao processo europeu a característica de uma realidade em rápida mutação, com diversas vertentes conjugadas, face à qual tem de ser definida uma estratégia de actuação integrada que, sem descurar o tratamento isolado dos diferentes dossiers, não esqueça a interdependência dos vários e consecutivos momentos da pesada agenda que está constituída.

Os países europeus vão estar confrontados, num horizonte temporal muito curto, com um processo negocial permanente e exigente, que também envolve outros parceiros não-europeus e Estados situados em diferentes contextos de alianças, cuja solução global tem que resultar coerente dentro de si mesma.

Mas cremos dever aproveitar esta oportunidade para nos concentrar na leitura da situação que se vive na União Europeia, à luz dos principais desafios que esta enfrenta, com vista a melhor definir as prioridades de intervenção do nosso país e a procurar pensar sobre quais são os interesses nacionais, permanentes ou conjunturais, a preservar e a procurar fazer reflectir nesse contexto.

O XIII Governo constitucional nunca escondeu que, em matéria de política europeia, a preservação dos elementos possíveis de continuidade seria a linha a seguir. Convém que fique claro que não constitui nossa intenção sublinhar ou explorar, para mero efeito de marcar a diferença, quaisquer elementos de descontinuidade neste campo, na medida em que as grandes orientações que regem a nossa política europeia têm forçosamente muitos pontos de contacto com as praticadas por anteriores executivos. Isto, não obstante as diferenças partidárias e ideológicas por detrás das respectivas bases de apoio político e parlamentar e sem prejuízo das linhas muito específicas de orientação política geral que se reflectem na governação nesta área.

Só que as realidades mudam e, independentemente do juízo que possamos fazer sobre algumas opções do passado, é necessário procurar novas respostas e, se necessário, utilizar novas atitudes.

Tratando-se de um processo dinâmico, entendemos também que continua a ser importante manter uma permanente ponderação, sem dogmatismos apriorísticos, mas também sem incorrer em qualquer tipo de eufemismos destinados a evitar susceptibilidades por parte de terceiros, sobre o modo como a acção diplomática portuguesa se deve objectivar, quer especificamente no contexto comunitário, quer nas áreas de intervenção internacional que sobre ele se reflectem indirectamente.

Como elemento central de abordagem, não podemos deixar de começar por notar que as linhas caracterizadoras do processo de integração iniciado por Portugal em 1986 começam a estar seriamente em causa e que temos que nos preparar para enfrentar, a prazo não muito longo, um quadro de realidades substancialmente diverso. 

Consideramos mesmo que esse processo integrador não vai conseguir completar-se, na perspectiva de evolução que uma leitura linear da década anterior deixava legítimo presumir, e que uma significativa inflexão de percurso terá inexoravelmente lugar. O que vem aí é uma situação nova e, para lhe fazer face, poderá ser necessário adoptar estratégias diferentes.

Este novo complexo de realidades tem como natural e primeira consequência o provocar de uma reacção conservadora e imobilista, na defesa do “status quo”, que a muitos parece ser o menor dos males. Mas não é por enterrarmos a cabeça na areia que o mundo à volta deixa de mudar. Não vale a pena ter ilusões e pensar que podemos enfrentar os desafios que se aproximam assumindo uma mera posição defensiva ou uma táctica de “slalom” negocial, procurando furtarmo-nos, uma por uma, às sucessivas dificuldades. Também não é nem prudente, nem sério, escondermo-nos atrás de estratégias alheias, procurando que outros façam o trabalho por nós nos vários dossiers.

As coisas estão cada vez mais claras: ou conseguimos participar na construção do futuro europeu envolvendo-nos nele por completo, segundo uma filosofia própria, sólida e percebida pelos outros como tal, ou não evitaremos, uma vez mais, um novo ciclo de periferização histórica do país.

Este aspecto da imagem que projectamos face aos outros Estados membros e à própria União tem alguma importância a que talvez não tenha sido dada durante alguns anos a atenção merecida. Isto não é necessariamente uma crítica a alguém, mas é uma mera constatação que se prende com a assunção no passado, por razões porventura ponderosas, de outras prioridades.

É nossa firme convicção que, no plano europeu, Portugal só muito lentamente tem vindo a ser reconhecido com uma imagem própria, isto é, com um modelo coerente de atitude face às questões centrais da União que não relevem dos seus interesses directos. O modo como o comportamento de Portugal é “lido” pelos outros - e pela própria “máquina” da União - acaba por ser demasiadamente marcado por um ou dois elementos de interesse nacional muito específico, que se revelam recorrentes nas tomadas cíclicas de posição por parte do nosso país, induzindo uma agenda maioritariamente egoísta. Isto acaba por resultar na ideia de que não temos outra filosofia que não seja a dos nossos interesses imediatos e que a nossa reflexão sobre o processo comunitário mais não é que a projecção mecânica desses mesmos interesses, ficando nós desligados ou indiferentes face a tudo quanto lhes não disser respeito.

É isto que é preciso mudar, partindo de um princípio muito simples: o processo integrador é também, em si mesmo, um interesse nosso enquanto europeus e, em regra, a melhor defesa daquilo que consideramos essencial no plano nacional é tanto melhor feita quanto tenhamos uma credibilidade acrescida no contexto global da União.

Mas, voltando à ideia inicial, julgamos que importa parar um pouco para reflectir sobre o sentido das alterações que o projecto europeu está a sofrer e tentar concretizar em que medida isso nos afecta. E porque essa mutação não ocorre por acaso, porque se justifica por razões objectivas, tentemos ver um pouco o que estará por detrás dos desígnios políticos que a mobilizam.

Correndo embora o risco de todas as simplificações, diríamos que a Europa deste final de século parece marcada, no essencial, pela necessidade sentida pelos seus responsáveis políticos de conseguirem dar resposta, em tempo útil e de forma eficaz, a três desafios básicos.

O primeiro desafio é o desenho de novos quadros institucionais que permitam integrar, numa matriz tendencialmente comum, as novas realidades emergentes no Leste do continente, o que parece passar por uma urgente reformulação das estruturas político-económicas, por um lado, e de defesa e segurança, por outro.

Trata-se, no essencial, de garantir a fixação em todo o continente de um novo modelo de estabilidade assente na prevalência dos valores democráticos e da economia de mercado, que possibilite a sustentação de um processo de desenvolvimento basicamente similar ao que hoje se pratica no Oeste da Europa. O objectivo final é, naturalmente, garantir que o tecido político intraeuropeu permita uma coexistência saudável das várias realidades nacionais e que as fronteiras terrestres da nova Europa se possam converter num espaço geopolítico e económico susceptível de diluir as tensões históricas tradicionais e, se possível, serem o terreno de ensaio de um entendimento estratégico de novo tipo que envolva a Rússia e a Ucrânia.

Simplificando, poder-se-ia dizer que o modelo que se gerou a partir do Tratado de Roma está confrontado com um esforço de alargamento do processo integrador aos limites geográficos do continente. Esse modelo terá, assim, de evoluir para ser capaz de completar-se com as novas culturas, políticas e outras, que constituem a matriz dos novos aderentes.

O segundo desafio tem a ver com a capacidade de sobrevivência, em termos eficazes, do modelo económico-social que constituiu o sucesso da experiência dessa mesma Europa comunitária. Ao ser confrontada com uma inelutável globalização do mercado mundial, que aliás corresponde aos interesses que dominam o seu próprio processo produtivo e em que assentam as respectivas bases financeiras, a economia europeia necessita de garantir uma capacidade de afirmação externa susceptível de poder ombrear com a dinâmica florescente em outros espaços, nomeadamente os EUA e a área asiática. Essa afirmação tem de assentar numa dupla linha: num reforço e prestígio da sua unidade económico-monetária e, para ser globalmente credível aos olhos de terceiros, numa identidade político-militar europeia específica que lhe sirva de suporte.

Sintetizando, também aqui, à Europa da União Económica e Monetária em curso de construção tem de corresponder, à luz dessa orientação, uma Europa política que Maastricht começou a desenhar, mas que a pressão dos acontecimentos tornou mais imperativa. Como já alguém disse, ao gigante económico-comercial não poderá continuar a corresponder um anão político.

Finalmente, o terceiro desafio é, um tanto ironicamente, um exercício de auto-convicção, que tem a ver com a própria construção da vontade de actuar em comum. Referimo-nos à tarefa de conquista das próprias opiniões públicas dos Estados envolvidos, à tentativa de compatibilização das várias agendas nacionais de interesses e à possibilidade dos agentes políticos conseguirem solidificar - e tornar isso evidente face aos seus cidadãos - a ideia essencial de que o processo europeu é a resposta certa para fazer face aos três grandes desafios de segurança que hoje se nos colocam:

         - à segurança económico-social, enfrentando as questões do desemprego, da crise geral da segurança social e da preservação do essencial do modelo social europeu;

         - à segurança pública, pelo combate eficaz à criminalidade organizada, ao tráfico de droga, ao terrorismo e à imigração incontrolada;

         - e, finalmente, às dimensões da segurança externa, consagrando a capacidade europeia para actuar, rápida e eficazmente, em terrenos que fazem parte do seu universo estratégico, por uma acção política e militar que, partindo da assunção de valores e princípios comuns, se efective de modo consensual através das estruturas supra-nacionais ou de cooperação intergovernamental reforçada.

Os três grandes desafios que, simplificadamente, isolámos estão naturalmente ligados entre si e constituem a essência da já referida agenda europeia até ao final do século.

Mas em que medida é que eles alteram o panorama de integração que Portugal tinha perante si em 1986 ?  Vejamos três aspectos.

Em primeiro lugar está uma questão essencial e que tem a ver com a crescente diversidade de interesses dentro da União. O que verificamos hoje é que estamos a passar de um tempo em que as então Comunidades acabavam, no essencial, por representar o máximo denominador comum de todos os interesses económico-sociais nacionais dos Estados Membros - e, portanto, o projecto ia-se apoiando num gradualismo pouco ambicioso - para um outro tempo, bastante mais exigente, em que se pretende constituir uma União com um âmbito de actuação integrada muito mais alargado e cada vez mais centrada naquilo que são os seus grandes interesses maioritários.

Qual a diferença ? Este novo modelo tende a marginalizar sectores nacionais ou franjas de interesses que se colocam contra o ciclo central que marca o percurso maioritário da União, gerando algumas tensões difíceis de compatibilizar e tornando, por exemplo, cada vez mais problemáticas as ratificações às alterações ao Tratado. Ora isto, queiramos ou não, é uma União diferente daquela CEE a que aderimos.

Em segundo lugar, temos a questão dos próximos alargamentos da União Europeia. Com a dimensão que se prevê que venham a ter, os alargamentos vão necessariamente conduzir a uma redefinição do projecto de solidariedade intraeuropeia, isto é, vão gerar novas e alternativas expressões dessa mesma solidariedade, que terá tendência para incidir prioritariamente nas economias mais desfavorecidas do novo conjunto de Estados membros. É hoje, para todos, evidente que o centro de gravidade das preocupações dominantes do continente se deslocou para Norte e para Leste e que isso vai determinar as futuras prioridades da União, tanto mais que o recurso à decisão por maioria qualificada vai alargar-se significativamente.

Isto significa que as bases em que assentava a execução de certas políticas vão ser postas inevitavelmente em causa o que, associado a um reflexo de crescente indisponibilidade para um acrescido esforço financeiro por parte dos principais contribuintes líquidos da União, torna a “manta” muito curta para todas as ambições. A consequência é óbvia: vai haver um esforço de redefinição dos encargos financeiros, quer através de novas filosofias de encaminhamento de fundos, quer por via de juízos radicais de subsidiariedade para a execução de certas políticas. Não será isto um novo modelo de integração ? Em nossa opinião é.

Em terceiro lugar, a reforma institucional em curso na União aponta  para uma clara desintegração ou regressão no aprofundamento do corpo comum de políticas, tendo como pretexto a Europa alargada, mas como alvo, desde já, os próprios Quinze. O debate que se trava hoje na Europa tem como ponto essencial - e Portugal tem sido dos intervenientes reconhecidamente mais atentos a esta realidade, tendo apresentado propostas formais sobre o assunto - a possibilidade de virem a criar-se, no futuro, sistemas de cooperação reforçada (outros chamam-lhe flexibilidade ou integração diferenciada) que possam permitir a alguns avançar mais depressa e, segundo algumas propostas, a provocar uma intervenção acrescida dos Estados membros no próprio âmago da iniciativa comunitária até agora reservado à Comissão Europeia. 

Segundo a leitura que fazemos dos trabalhos da Conferência Intergovernamental, é hoje um dado adquirido que as cooperações reforçadas serão uma realidade no futuro próximo. A questão está em saber em que medida elas consagrarão uma partilha de poderes substantivamente diferente da actual, em especial se articulada a uma nova ponderação de votos no Conselho. Mas que, com a introdução desse mecanismo, estamos já a falar de outra Europa, disso não temos a mais leve dúvida.

Se associarmos os mecanismos de cooperação reforçada que acabamos de referir com a alteração das prioridades em matéria de políticas, e se pensarmos que, em particular após o alargamento mas com efeitos que se sentirão já a Quinze, uma generalização da votação da maioria qualificada pode fazer prevalecer um eixo de interesses situado mais a Norte, ver-se-á que estamos perante um distinto quadro global que pode alterar por completo os termos de referência do actual processo integrador. Esse quadro deixa de ser controlável por um qualquer país isoladamente, muito em especial se de média ou pequena dimensão, numa perspectiva estritamente de gestão de decisão política tradicional.

A este propósito, julgamos importante deixar dito algo que sabemos controverso, mas que parece importante desmistificar: a absolutização da unanimidade na tomada de decisões no âmbito da União Europeia - salvo nas questões “para-constitucionais” ou em áreas de extrema sensibilidade - é uma ideia com escasso sentido prático.

Por duas razões. Desde logo, porque um razoável juízo de eficácia do sistema levar-nos-á, com certeza, a perceber que é impossível gerir uma estrutura com uma permanente “espada de Dâmocles” prestes a gerar um bloqueio da máquina, pela intransigência pontual de um só país. O caso britânico na crise da BSE foi paradigmático e acabou por constituir um “tiro no pé” para a própria estratégia de Londres nesta área.

Mas, igualmente, porque é irrealista pensar que um país, particularmente se fôr de pequena ou média dimensão, pode manter por muito tempo tal atitude de obstrução sem se ver pressionado em outros domínios da actividade da União. A máquina comunitária tem mecanismos severos para quem fira a sua lógica central, criando constrangimentos, mais ou menos subtis, que acabam por constituir uma punição política bastante séria, particularmente para os mais fracos.

Para um país como Portugal, e salvo casos muito específicos que é fácil isolar, julgamos preferível o cenário em que o nosso voto em Conselho possa ser negociado para a construção de uma maioria qualificada ou de uma minoria de bloqueio do que a ideia, só aparentemente sustentada na prática, de que o facto de dispormos de um direito de potencial veto, através da preservação da unanimidade, nos confere uma importante salvaguarda.

Mas, para ultrapassar esta barreira psicológica, há uma lógica de raciocínio a inverter. A União Europeia não é uma mera organização internacional, onde o consenso é geralmente regra. Estamos numa estrutura de cariz supranacional de tipo novo. Partilhar mais profundamente a essa dimensão e, em paralelo, ir tão longe quanto possível nos modelos de cooperação intergovernamental, representa, a nosso ver, a atitude mais sensata para um país como Portugal.

É essa outra mensagem que gostaríamos de deixar: é forçoso fazer um esforço para nos mantermos no centro de todo e qualquer processo de evolução intraeuropeu, desde que para tal tenhamos possibilidade e o consideremos importante para a leitura que fazemos do processo integrador e para a projecção nele dos nossos interesses.

Convém que fique claro que o quadro europeu, ainda que marcado por modelos diferentes, é o espaço de projecção óbvia dos nossos interesses essenciais. Embora nos não esgotemos, em termos de afirmação externa, no terreno continental europeu, ele é e continuará a ser um elemento central na definição de toda e qualquer política nacional.

Aliás, o único meio de podermos potenciar as outras dimensões do nosso perfil político-diplomático é, precisamente, através da inserção dessas “mais-valias” no quadro global das relações externas da Europa. É, assim, que devemos procurar associarmo-nos à liderança de processos de acção comunitária face a terceiros espaços onde possamos contribuir com um valor acrescentado próprio, nomeadamente nas áreas mediterrânica e latino-americana, bem como no relacionamento euro-africano, em especial no quadro da revisão da Convenção de Lomé.

E deveremos contribuir para afirmar, nesses mesmos contextos negociais, o património de valores éticos e de solidariedade que entendemos centrais à Política Externa e de Segurança Comum que pretendemos ajudar a solidificar e a prestigiar, como matriz coerente com a filosofia da cultura europeia de liberdades.

É partindo deste princípio de base - de que devemos potenciar a nossa intervenção no contexto comunitário sempre que desejável e possível - que deve ser entendido todo o nosso empenhamento em participarmos activamente nas políticas europeias. Daí o esforço que o Governo tem vindo a desenvolver no sentido de situar Portugal numa posição tão confortável quanto possível no momento em que vier a ser feita a avaliação, à luz dos critérios nominais de comportamento macroeconómico, para a passagem à terceira fase da UEM.

Neste domínio, convém que fique claro que o nosso empenhamento na UEM tem uma dupla componente.

Por um lado, traduz um esforço para sedimentar um equilíbrio económico-financeiro que possibilite o acesso do nosso país a um ambiente alargado de estabilidade monetária, susceptível de constituir uma base sólida e duradoura para um crescimento sustentado.

Mas também, e num plano não menos importante, constitui a afirmação da vontade de integrar um grupo de Estados que, ao que tudo aponta, constituirão o eixo central de decisão da Europa política do futuro.

Tudo indica que o desenvolvimento desigual do projecto europeu venha a ser inevitável. Começa a desenhar-se um cenário em que os Estados que vierem a passar à 3ª fase da UEM acabarão por constituir, entre si, um modelo reforçado de União Política que poderá ser uma espécie de “refundação” da actual União. Interessa-nos ou não tentar estar nesse núcleo, onde as grandes decisões se tomam e cujo espaço económico-social se prevê seja um eixo central da estabilidade e crescimento da Europa, apoiado por uma moeda forte e por uma entidade bancária central que a garanta ?

Este empenhamento na moeda única não é uma mera obsessão voluntarista. É um juízo muito ponderado sobre o que entendemos essencial para o país, convindo que fique claro que temos consciência dos custos, políticos e outros, colaterais à assunção desta prioridade.

Ligada a esta dimensão política, que espelha o nosso empenhamento europeu, está igualmente a questão da nossa visibilidade em matéria de colaboração em esforços de manutenção de paz e acções humanitárias, no quadro de decisões da ONU. Neste capítulo, as Forças Armadas portuguesas têm dado, hoje como sempre, um exemplo de responsabilidade e de resposta profissionalmente eficaz ao que lhes era solicitado e contribuíram, de forma muito significativa, para prestigiar Portugal como parceiro de parte inteira. Se um país quer dar de si próprio uma imagem de colaboração no interesse colectivo que integra, tem necessariamente de fazer esforços consequentes que traduzam a partilha das responsabilidades essenciais nos quadros em que está inserido. E Portugal, neste domínio, mostrou que não necessita de receber lições de ninguém.

Uma outra questão que se nos afigura decisiva diz respeito à preservação de uma atitude positiva face aos futuros processos de alargamento da União. Qualquer gesto que pudesse ser interpretado como bloqueante desses processos seria de grande irracionalidade política, para além de contraditório com o posicionamento responsável que Portugal sempre assumiu em todas as dimensões em que esteve em jogo a estabilização do continente. E este é flagrantemente um desses casos. O alargamento terá os seus custos, procuraremos que eles sejam divididos de forma justa no seio da União, mas mantemo-nos numa linha de solidariedade com os projectos de afirmação democrática e de desenvolvimento de uma área que também assumimos como uma fronteira nossa. Aliás, estamos já a dar a esses países o contributo da nossa experiência em matéria de integração e temo-nos empenhado para que aos agentes económicos portugueses possam ser concedidas as oportunidades de participar de forma plena no desenvolvimento económico-social desses mesmos Estados.

Ligada ao alargamento, temos, naturalmente, a questão da redefinição das políticas internas da União. Cremos inevitável que Portugal tenha aqui, desta vez, um papel de liderança no processo de reflexão sobre o futuro das políticas estruturais e, em especial, da política de Coesão Económica e Social. A União Europeia é uma união de interesses e, se falamos frequentemente de solidariedade intraeuropeia, não podemos esquecer que o desenvolvimento global de todos os espaços dentro da União, a criação de condições para um crescimento harmonioso e para a diluição das tensões económico-sociais, é uma questão de interesse comum. 

Além disso, o crescimento do mercado dos países da Coesão não é indiferente aos contribuintes líquidos da União: de que nacionalidade são as empresas envolvidas nos grandes projectos financiados pela União? De onde provêm os produtos que hoje inundam os supermercados portugueses ? As políticas de solidariedade têm uma componente não despicienda de retorno e constituem, além disso, um contraponto do Mercado Interno. Preservá-las, embora dimensionando-as de modo diferente, é um imperativo que tentaremos compatibilizar, em todos os casos, com os esforços financeiros que os alargamentos implicarão.

Acresce, no nosso caso, que a política comercial externa da União tem seguido uma tendência para privilegiar os interesses - que reconhecemos como maioritários na Europa comunitária - dos Estados membros mais desenvolvidos, garantindo nos acordos com países terceiros condições de acesso a produtos de gamas tecnológicas mais elevadas (que Portugal ainda não produz), ao mesmo tempo que facilita a entrada a produtos agrícolas ou produtos industriais de menor sofisticação (concorrentes com os nossos), para embaratecer os custos do respectivo consumo. A circunstância de estarmos frequentemente em contra-ciclo produtivo com os interesses centrais da União é mais um motivo que justifica a preservação de linhas de financiamento específicas, tanto mais que constitui obrigação comunitária a assunção de uma distribuição tanto quanto possível harmoniosa dos custos da globalização comercial, cujas bases - recorde-se - ela própria negociou. É à luz destas ideias, e na defesa da especificidade e da óbvia prioridade de algumas situações próprias do nosso estádio de desenvolvimento, que vamos participar no debate sobre o futuro das políticas estruturais e de coesão.

E isto conduz-nos a outra dimensão, que tem a ver com a própria atitude negocial e com o modo de nos articularmos com a máquina comunitária. Compreenderão que não se vá muito longe nesta análise, mas sempre gostaríamos de dizer que constitui orientação do Governo manter um processo de diálogo construtivo com todas as instituições comunitárias, nomeadamente com a Comissão Europeia, cujo papel central no processo integrador muito respeitamos, e de cuja preservação dos poderes temos sido dos maiores defensores no actual processo de revisão dos Tratados. Essa abertura para o diálogo tem naturalmente como corolário o assumir de uma frontalidade total e o evitar de alguns processos ínvios de actuação. Reconhecemos que isto poderá ser, por vezes, algo incómodo, mas cremos que o modo directo e responsável como os membros do Governo, e a própria Representação Permanente em Bruxelas, têm vindo a actuar já deu frutos e tem condições para dar muitos mais. E, não raramente, tem contribuído para que as nossas posições fiquem mais claras e para que se comece a criar uma expectativa do nosso comportamento face a certas situações. Era esse o objectivo e creio que tem sido conseguido.

(Intervenção feita no Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa, em 27 de Janeiro de 1997)