22 de fevereiro de 2024

Segurança

Apresentação do livro de Nelson Lourenço, "Sociedade Global e Segurança - Modernidade, Complexidade e Incerteza", no dia 21 de fevereiro de 2024

Quero começar por agradecer ao Nelson Lourenço a amabilidade que teve em convidar-me para colaborar na apresentação do seu novo livro.

Eu e o Nelson somos amigos, como também o sou da Ema, desde há mais de 55 anos, das salas e dos belos jardins do ISCSPU - então com um "U" no fim. O país, em 1974, também acabaria por perder o seu "U"... E nós perdemos, para sempre, aquelas bibliotecas, as aulas de Ronga, de Quimbundo, de Tetum, mas também a serenidade da Sala Verde para a conversa, o sossego das mesas de leitura do Centro de Estudos Missionários, os "xes" beirões do padre Silva Rego, a dona Irene da secretaria, o Zé Augusto da portaria e, last but not least, o professor Adriano Moreira. 

E, já que falamos de segurança, também perdemos - eu guardo sempre isso no avesso da minha memória afetiva - também perdemos o capitão Maltez, a entrar um dia por ali dentro, à frente da polícia de choque e saquear a Associação de Estudantes. Perdemos já tanta coisa, boa e má.

Com o tempo e as andanças de ambos, eu e o Nelson também nos fomos perdendo de vista um do outro. Sabíamos onde cada um andava - ele numa brilhante carreira académica, eu pela itinerância diplomática - mas víamo-nos pouco. 

Um dia, o Nelson desafiou-me para integrar uma aventura chamada GRES - Grupo de Reflexão Estratégica sobre Segurança. Ele era, e continua até hoje a ser, a alma do GRES, onde temos como figura tutelar o Dr. António Figueiredo Lopes e onde o José Conde Rodrigues participa ativamente com o seu conhecimento académico e político. 

O GRES fez entretanto coisas muito estimáveis, para quem não saiba. E vai fazer mais, em breve, para quem estiver interessado. A minha colaboração no Grupo, devo confessar, foi sempre modesta, como modestas são as minhas competências em alguns dos domínios em que o GRES declina a sua ação, em particular em muito do que excede as dimensões de segurança internacional, domínio onde a vida profissional me rotinou a refletir.

Serve isto para alertar que foi de uma imensa irresponsabilidade ter acedido a participar na apresentação desde livro, correspondendo à também imensa generosidade que foi convite do Nelson. Mas, porque a audácia ainda não paga imposto, vamos então a isso. Serei breve e, para sê-lo, decidi escrever o que estou a dizer.

Cheguei ao fim deste livro com um sentimento duplo. 

Desde logo com a ideia de que há realidades que atravessam o nosso quotidiano sem que nós, no afã desse mesmo dia a dia, cuidemos em sistematizá-las. E que é necessário surgir alguém, munido de ferramentas académicas, para pôr todas essas perceções em ordem. Através do trabalho que resultou neste livro passamos a entender melhor certas coisas que, por fazerem parte do nosso cenário comum de vida, não tínhamos isolado e organizado. 

Lembro-me bem de que, quando comecei a estudar sociologia, nos alertavam para a dificuldade que essa ciência começou por ter, para se afirmar, pelo facto de tratar de coisas comuns, que faziam parte quase inconsciente da nossa rotina, mas que, até ali, não tinham encontrado a dignidade de um tratamento científico. Ao ler este estudo lembrei-me bastante disso. As questões de segurança, para o cidadão comum, estão muito nesse plano.

O segundo sentimento é de alguma preocupação. Embora o Nelson, no seu esforço para não perder o otimismo, caia sempre, no texto, no "dever ser", na possibilidade de se organizarem soluções para os problemas encontrados, como contraponto às disfunções que vai alinhando, na radiografia crítica que faz da evolução das várias dimensões da segurança, devo confessar que, em regra, cheguei ao fim dos vários capítulos, das "lições" em que o livro se divide, com o sentimento de uma acrescida inquietação. É que algumas das derivas detetadas no estudo, para quem for minimamente realista, não auguram nada de bom.

Um leitor comum decantará deste livro uma banalidade que, nem por o ser, deixa de ser uma constatação, uma grande verdade: a segurança, nos dias de hoje, já não é o que era. 

Ao percorrer o texto, o leitor será levado a concluir o óbvio: que, nas sociedades contemporâneas, aquelas que eram algumas das baias que, no passado, sustentavam os mecanismos da segurança coletiva têm vindo a ser corroídas e é cada vez mais problemática, eu diria mesmo improvável, a possibilidade de se vir a restaurar o contrato social que garanta a sua eficácia, aceitação e, mais do que isso, a perceção da sua legitimidade.

Deste livro ressalta a ideia de que a diluição de algumas fronteiras, físicas e outras, que, no passado, isolavam e protegiam de contágio algumas realidades sociais, no seu nível nacional ou outro, ao desaparecerem ou atenuarem-se, geraram dinâmicas que obrigam ao desenho de novos modelos de governança nos domínios da segurança. E que, nesse domínio, estamos a viver um tempo de transição que parece muito longe de resolvido.

Gostava, naquilo que é a minha experiência, na área da segurança internacional, de partilhar agora algo de pessoal. E que vai no mesmo sentido daquilo para que este livro aponta.

Na última década, tenho sido chamado, no âmbito de várias empresas e instituições com ação internacional, a preparar pareceres sobre os riscos seus investimentos externos. Nessa atividade, confronto-me com uma crescente dificuldade, ao procurar identificar a importância relativa das várias variáveis de segurança, a que os responsáveis dessas mesmas empresas devem atentar nas suas opções. Não sou pago para espalhar alarmismos fáceis, mas também não me posso eximir a ser claro nas áreas onde me parece que existem riscos reais. 

As variáveis que costumo utilizar têm uma dupla natureza. 

Por um lado, as questões internacionais que provocam desequilíbrios na segurança política e institucional desses mercados e, por outro, as dinâmicas políticas internas dos vários países, onde às vezes tenho de travar derivas imaginativas que quase relevariam da futurologia. Se lhes disser que os mercados de África e da América Latina fazem parte essencial dessas minhas preocupações profissionais, perceberão melhor a minha inquietação. Noto, aliás, que o Nelson, no seu livro, refere precisamente essas duas geografias, como estando no centro de problemas muito específicos em matéria de segurança que ele desenvolve.

Mas se eu acrescentar que a outro tipo de investimentos pode também não ser indiferente o facto de Trump estar ou não na Casa Branca, acho que isso também ajuda a perceber aquilo que hoje interroga alguns operadores económicos.

Falei da América Latina, da África, dos Estados Unidos. E na Europa? 70 anos sem guerra tinham adormecido a nossa precaução coletiva. E, agora, com a Rússia no estado em que está, como é que vai ser? E o futuro será com a NATO ou vai ter de ser vivido sem as suas teóricas garantias de segurança? E os surtos de terrorismo? E as tensões migratórias, religiosas, identitárias? E os populismos? E a China? E as suas relações cada vez mais tensas com os EUA? E a Europa, vai de arrasto da sinofobia de Washington?

Está tudo mais indefinido. Pensar a prazo é um imenso salto no escuro. Julgo que todos temos um pouco a sensação de que, no passado, tudo era mais facilmente enquadrável, que havia mais constantes em que nos podíamos apoiar, que as linhas tendenciais de evolução de riscos eram mais rapidamente definíveis. Acho que todos temos a tentação de pensar assim apenas porque o passado já lá vai. Mas se metermos uma mão na nossa memória dificilmente encontraremos um tempo em que, nesse tal "bom" passado, alguma vez se viveu o sentimento de não estar em crise.

Mas é verdade: sentimo-nos, nos dias de hoje, um tanto perdidos e menos capazes de entender as dinâmicas de um mundo onde à debilidade do poder enquadrador dos Estados se soma a perda de alguns padrões comuns, de aceitação mais ou menos implícita, que nos davam algum conforto. 

É uma evidência que a Guerra Fria constituía um terreno de serena previsibilidade. Os riscos eram imensos, existenciais, mas pareciam empatados. As tensões ideológicas desenhavam um mundo a preto e branco, onde era fácil saber onde cada um estava. As fronteiras protegiam as visões nacionais, as "nuances" eram muito relativas. O que saía fora dos carris parecia identificável e controlável. Com o ilusório fim dessa mesma Guerra Fria, até a paz eterna pareceu possível. Por um momento, os riscos pareceram atenuados, contidos, comportados num quadro em que o diálogo alargado aparecia como panaceia. O fim das fronteiras, físicas e virtuais, iriam, na visão mirífica desses novos "amanhãs que cantam", criar um éden de entendimento, nessa nova Sociedade Global que o livro do Nelson analisa.

Só que, depois, foi o que se viu. O livro do Nelson Lourenço tem a imensa virtude de nos explicar, às vezes não o dizendo explicitamente, que esse novo mundo maravilhoso foi, afinal, um "trompe l'oeil". E ao mostrar-nos, com a serenidade "rassurante" do "argot" académico, como as coisas, em lugar de se simplificarem, se tornaram afinal muito mais complexas. Ou "desafiantes", como está na moda dizer, quando se pretende disfarçar os riscos perante os acionistas e melhorar os bónus dos KPI. Mas, essencialmente, a meu ver, as sociedades podem estar a perder o fio à meada, o controlo de algumas dinâmicas, algumas já puxadas e conduzidas por pulsões extremistas.

Permitam-me agora que termine com a ligação de um dos capítulos interessantes do livro à nossa atualidade nacional próxima. É, aviso, uma questão polémica. Falo da polícia.

Nesse capítulo, o Nelson desenvolve o tema da relação dos cidadãos com a polícia. E fala da importância de afirmação da autoridade democrática, bem como da confiança que a instituição policial deve inspirar na sociedade. E explica também que, dentro dessa mesma sociedade, a leitura sobre a bondade da atitude e comportamento das polícias está hoje longe de ser uniforme. Por exemplo, numa sociedade multi-étnica, multicultural e com áreas de forte exclusão, há setores que perdem a confiança na polícia, porque entendem que esta os descrimina e os tem por alvos preferenciais na ação repressiva. É a sociedade que se divide perante a polícia.

Ao olhar o que passa entre nós com o comportamento recente dos elementos das forças policiais, pergunto-me qual irá ser o efeito na perceção de segurança dos nossos cidadãos que as atitudes de muitos elementos das forças policiais podem vir a provocar. Quando os polícias incumprem as leis das manifestações públicas, quando apresentam baixas médicas que parece serem falsas, quando ameaçam com o boicote das eleições, dando frequentemente de si próprios a imagem turbulenta, como a que agora estão a projetar, em que medida isto é ou não uma questão que afeta a segurança coletiva? Quando os sites e grupos de Whatsapp ligados a associações policiais refletem a sua adesão a ideologias extremistas, quando se acumulam sinais de praticas discriminatórias da polícia sobre setores étnicos, qual a confiança que essa mesma polícia pode despertar nos cidadãos? 

Faço parte de uma geração que, com orgulho, assistiu à transição e à mudança de qualidade das polícias, de órgãos repressivos ao serviço da ditadura até se tornarem forças prestigiadas de proteção da vida cívica democrática. Esperemos que não se esteja agora a estragar todo esse percurso positivo.

Por tudo isso, meu caro Nelson, embora sabendo que não vais seguir o meu conselho, eu deixar-te-ia, provocatoriamente, a sugestão de que, num próximo livro, possas vir a tratar o tema "Quando a polícia ameaça a nossa segurança".

Muito obrigado pela vossa atenção.

15 de fevereiro de 2024

"Portugal e o Futuro"

Apresentação do livro "O general que começou o 25 de Abril dois meses antes dos capitães", de João Céu e Silva, no dia 15 de fevereiro de 2024

Começo por agradecer ao João Céu e Silva o convite que me fez para intervir na apresentação deste seu novo livro. Uma palavra de gratidão é também devida a Susana Santos, nossa anfitriã, e a Rui Couceiro, editor do livro.

Decidi colocar por escrito parte do que vou dizer, para ser mais sintético e poupar o vosso tempo.

Devo confessar que achei estranho quando recebi o contacto do João Céu e Silva. Não nos conhecíamos, não sou historiador, nem conheci pessoalmente António de Spínola. A verdade é que eu era oficial miliciano ao tempo do 25 de Abril e que andei envolvido em algumas "guerras" desse tempo. Mas fui um ator secundário, às vezes um mero figurante, mas sempre, assumo, um curioso "voyeur" de tudo aquilo.

Como toda a gente, tinha e tenho uma opinião sobre o que então se passou. Uma opinião que se alterou bastante, não necessariamente com o tempo, mas com os novos factos e revelações de que entretanto fui tendo conhecimento. E ainda hoje - por exemplo, com este livro - confesso que continuo a aprender.

Alguma dessa minha leitura dos acontecimentos deixei-a em textos que fui publicando, ao longo dos anos, no meu blogue. Ao que constatei, o João Céu e Silva leu-me e fez o favor de considerar digna do seu interesse essa minha perspetiva. Fico-lhe grato por isso.

De todo o modo, faço esta intervenção com a consciência de que estou a entrar em terrenos que não são os meus. Nesta sala estão pessoas que trabalharam diretamente com Spínola na Guiné - identifico João Diogo Nunes Barata, José Blanco, Carlos Matos Gomes e José Manuel Barroso - mas igualmente um historiador, como José Pedro Castanheira. Assumo, por isso, a minha talvez irresponsável ousadia em tratar este assunto. Mas vamos então a ela.

Começo por dizer onde estava, onde estávamos muitos de nós, há 50 anos. Para um civil fardado, que era o que eu era por esse tempo de 1973/1974, aquela tropa não era a minha guerra: era uma coisa deles, do regime, da ditadura, que nos era imposta. Mesmo em gente mais moderada ou complacente com o regime, não se via, à época, o menor entusiasmo em torno na guerra colonial. A guerra pode ter sido popular nos seus alvores, logo em 1961, mas já o não era mais. Por essa altura, a aventura colonial só era exaltante para alguns meios nacionalistas radicais.

No máximo, as pessoas assumiam a guerra como uma inevitabilidade, a que tinham de adaptar a sua vida. Mas vamos ser claros: a guerra colonial já não motivava praticamente ninguém. Eu diria mesmo que o patriotismo não passava por ali. Havia uma imensa indiferença face ao discurso gongórico do regime. 

Embora na perspetiva dos militares profissionais as coisas pudessem ter outra perspetiva, havia um outro pormenor: para nós, civis, a guerra colonial não tinha feito salientar grandes vedetas militares. O nome então mais conhecido, aliás, entre os generais, era mesmo Kaúlza de Arriaga, não Spínola. Tinha fama de "ultra" e tinha no seu currículo o facto de ter sido um dos operacionais que tinham desativado o golpe de Botelho Moniz, em abril de 1961. 

Spínola era um nome de que também se falava, mas não tinha minimamente a imagem de ser um democrata. Pelo contrário. Persistia mesmo a ideia de que tinha ido como observador na Divisão Azul, na companhia de fascistas ibéricos que tinham estado ao lado da Wermacht, à espera da queda militar a União Soviética. 

Para muita gente da minha geração política, e em termos muito simples, Spínola era um "fascista" como os outros. O seu perfil físico e coreográfico, aliás, confortava esse preconceito. Spínola parecia uma caricatura de si mesmo: o pingalim, as botas, o monóculo. Mas é verdade que, ao contrário de Kaulza, que projetava uma imagem de combatente encarniçado pelo regime, da Guiné chegavam alguns sinais da relativa heterodoxia de Spínola.

Ele fora mandado para lá ainda por Salazar e fora mantido por Caetano. Ao que constava, vinha a assumir algumas tomadas de posição um pouco ao lado do discurso oficial. Com a emergência do caetanismo, havia rumores de que Spínola chegou a estar próximo da linha da ala liberal, enquanto ela durou. E isso era interessante para quem, como era o meu caso, via com agrado o surgimento de fraturas na muralha política do regime.

Contudo, o discurso de Spínola parecia manter uma ambiguidade que dava para tudo. E, repito, ele não era visto como um democrata. Longe disso, tinha mesmo um perfil de recorte autoritário. Isto para dizer que, para quem andava então pelo Portugal europeu fardado à força, opositor ao regime embora sem atividade muito evidente, como era o meu caso, Spínola não tinha uma réstia de credibilidade acrescida face ao resto da hierarquia militar. 

Sabia-se que, na Guiné, ele tinha desenvolvido uma boa ação social, de captação das populações e das chefias tradicionais, mas via-se isso como algo de puramente tático, como a sua forma pessoal de levar a água ao moinho da aventura colonial, cujo estertor nos parecia cada vez mais evidente. Eu era então oficial de Ação Psicológica da minha unidade e, perante o que nos chegava da Guiné, aquilo parecia um "déjà vu". 

Sabia-se, no entanto, que o pessoal militar que tinha estado na Guiné criara, em muitos casos, uma forte admiração pelo homem, até pela coragem física que o general revelava. Mas, repito, daí a vê-lo como um democrata, suscetível de encarnar uma alternativa decente ao regime, ia uma imensa distância.

Quando Spínola regressou à Europa, o facto de ter sido para ele criado o cargo de vice-CEMGFA tinha sido um óbvio sinal revelador da sua força. O regime faz-lhe algum "rapapé", o que provava que a figura de Spínola se tornara incontornável. Saíra da Guiné com prestígio militar, era mesmo uma espécie de vedeta e tenho a sensação de que muitos se interrogavam já sobre o real papel de Costa Gomes nesse tandem. 

Volto a lembrar que esta era a perspetiva de quem não estava no segredo dos deuses das tricas e entendimentos entre o pessoal militar. De quem sabia vagamente das reivindicações corporativas mas desconhecia onde estava Spínola face a tudo aquilo. 

Quando surgiu o "Portugal e o Futuro", que foi um livro que me recordo de ter lido com algum enfado, devo ter dado comigo a pensar: se este homem, nesta posição, escreve e publica isto, é porque tem força para tal. Quando observei que, com a publicação do livro, ele entrou em conflito com o sistema, concluí que dali podia resultar alguma coisa séria.

Quem viveu essa época sabe que então se observavam, com muita atenção, todas as dissonâncias que pudessem emergir no seio do regime. 

Depois, Spínola e Costa Gomes são demitidos. E dá-se o episódio das Caldas. Recordo, na minha unidade militar, que o modo como os vários oficiais reagiram a esse evento foi visto como um "separar de águas": percebeu-se quem reagiu negativamente ao golpe e quem se "neutralizou" taticamente. 

Simultaneamente, nos contactos entre os oficiais do quadro e os milicianos, sentia-se que se estava a gerar uma aproximação a um momento que parecia cada vez mais iminente.

Mas, devo confessar, na minha perspetiva, que era a de quem estava um tanto distante da realidade da conspiração, as Caldas tinham sido um golpe falhado, inserido no contexto global da revolta que sabíamos estar em curso. Só mais tarde vim a entender a diferença entre as duas coisas.

E chegamos ao dia 25 de Abril, aos seus antecedentes imediatos e aos tempos que lhe sucederam.

Muitos de nós, como disse, acompanhámos todos esses tempos com muita atenção. Tínhamos assistido à chegada do "Portugal e o Futuro", tínhamos, com preconceitos e desconhecimentos à mistura, a tal ideia menos positiva de Spínola, não sendo para nós muito clara a sua relação com a agitação que sentíamos no pessoal do quadro. E posso presumir que, à época, misturássemos as duas coisas.

Apesar de nos julgarmos bem informados, não estávamos: só tínhamos a espuma visível. Mas, apesar de tudo, com todas essas limitações, éramos uns privilegiados. E digo isto porquê? Porque, no 25 de Abril, essa não era a situação do cidadão comum português, que não fazia a mínima ideia de que Spínola tivera de obter luz verde da Pontinha para poder ir apanhar o poder ao Carmo. 

Para o cidadão comum, naquele dia, Spínola foi visto como o "dono" da Revolução. Esse mesmo cidadão tinha uma vaga noção de que Spínola tinha escrito um livro que, no fundo, era contra a continuação da guerra, numa atitude que contrariava a vontade de Caetano, o qual, por essa razão, o tinha demitido. E ali estava agora ele, a sair vitorioso do Carmo, com o poder na mão. 

Horas depois, já pela madrugada, lá surgia ele de novo sentado no centro da Junta de Salvação Nacional, que a RTP nos dava a preto-e-branco. Sem um sorriso, lá estava o mesmo Spínola, mostrando um esgar de autoridade, que só assustou alguns mais atentos, a dizer ao que o novo poder vinha. 

Ninguém sabia do debate que, entretanto, tinha tido lugar na Pontinha, a propósito da linguagem a inserir na proclamação do MFA, nem ninguém fazia ideia de que aquilo que ele dizia era produto de um compromisso. Repito: aos olhos da esmagadora maioria dos portugueses, Spínola era o chefe incontestado da Revolução. Para muita gente, com a edição do seu livro, ele fora o responsável pelo golpe. 

A invisibilidade do MFA, da sua Comissão Coordenadora, que foi deliberada, como sabemos, ajudou muito nessa perceção. Com a preocupação de ter oficiais generais a dar a cara, para "inglês ver", para não dar ares latino-americanos ao golpe militar, os capitães de Abril fizeram o movimento correr esse risco.

Spínola percebeu isso e cavalgou essa mesma perceção enquanto pôde. Desde logo, tentando dividir o MFA, procurando dar força às dimensões militares mais recuadas - parte das quais, valha a verdade, só ficaram de alma e coração com o movimento enquanto ele não se afastou de Spínola. 

Depois, quando viu que a relação de forças dentro da tropa começava a não o favorecer, Spínola, aproveitando a tal perceção pública de que "o 25 de Abril era ele", optou pelo circuito dos discursos catastróficos, com um pouco subliminar anti-comunismo como linha doutrinária básica. Mas já era tarde e o 28 de setembro acabou por colocar um ponto final nessa estratégia.

É na análise de todo este este turbilhão, da Guiné até ao afastamento institucional de Spínola, que o livro de João Céu e Silva revela fortes méritos. 

Desde logo, através de vários testemunhos, traça-nos um retrato da figura de Spínola, do seu perfil militar mas, igualmente, das suas inegáveis ambições no terreno político. A discrição que dele vai sendo feita ajuda-nos a perceber melhor que, por detrás da imagem de um general poderoso e carismático, havia um político inábil, precipitado, algo naïf. Spínola nunca terá percebido que a sua aura militar estava muito longe de o poder conduzir a uma carreira política estável. Spínola era um autoritário. Nunca seria um líder democrático. Não é De Gaulle quem quer...

Um segundo retrato que o livro nos traz é o do spinolismo, desse deslumbre de grupo em torno de um militar corajoso e afirmativo, que arrastou atrás de si muita gente que com ele trabalhou. Mas que também deixou outra gente de fora, de que Vasco Lourenço é talvez a cara mais emblemática. O spinolismo pescou em áreas do Movimento dos Capitães, mas não consegue influenciá-lo de forma marcante. Foi o spinolismo que esteve no centro do golpe das Caldas, mas, até por isso, pela neutralização temporária do núcleo do spinolismo que o falhanço desse movimento representou, ele foi praticamente irrelevante para a execução do 25 de Abril. 

Aliás, a tentativa de recuperação do 25 de Abril, levada a cabo por Spínola e pelos spinolistas, na Pontinha, na noite de 25 de Abril, falhou por isso mesmo. São dois mundos que se tocam, mas que, a partir dessa data, estarão em crescente divergência.

Este trabalho permite-nos também perceber que o objetivo de Spínola ao escrever o livro, para além de se colocar num pedestal, como um militar que queria dar voz aos seus camaradas cansados de dar tempo ao poder político para resolver o problema africano, não era fazer uma revolta: o seu objetivo era fazer evoluir o regime, numa perspetiva reformista. Democrática? Logo se veria. Para o "Portugal e o Futuro" essa não parecia ser a preocupação central. 

O João Céu e Silva fala bastante da ocultação do "Portugal e o Futuro", no pós 25 de Abril. Será deliberado ou será pela sua objetiva irrelevância da sua mensagem, como parece pensar Medeiros Ferreira? 

A importância do livro é o gesto conseguido com a sua publicação ou o seu conteúdo? As suas soluções ainda teriam um mínimo de exequibilidade no tempo internacional de então? Ao publicá-lo, Spínola pensaria que estava a dar uma oportunidade a Marcelo Caetano para, com um apoio militar, tentar uma hipótese de evolução do regime? 

Eu inclino-me para algo que Raul Rego, ao que recordo, disse: "O que Vossa Excelência disse não é novo. O que é novo é isso ter sido dito por Vossa Excelência".

Ninguém mais falou do "Portugal e o Futuro", depois do 25 de Abril? Claro que não. O programa do MFA, mesmo com todos os cuidados semânticos que Spínola lhe introduziu na Pontinha, era a-noite-e-o-dia face ao "Portugal e o Futuro". Por isso, porque a sua mensagem como manifesto para uma solução política está inapelavelmente datada, o livro morre nesse dia.

Sem querer entrar demasiado pela História contra-factual, gostava de terminar especulando um pouco. 

Imaginemos que, por uma qualquer razão, o livro de Spínola não tinha sido publicado até ao momento em que se dá a revolta militar dos capitães. 

E, que, sem livro, portanto, sem a demissão dos dois chefes militares, sem ter havido golpe das Caldas, sem a cena da "brigada do reumático" e - muito importante ! - sem o destaque relativo de Spínola face a Costa Gomes (que o livro proporcionou), o movimento fazia o seu golpe.

Um parêntesis para um ponto muito importante que João Céu e Silva não deixa de destacar: sem o "Portugal e o Futuro" publicado, haveria um setor significativo das Forças Armadas que talvez se tivesse sentido menos motivado para aderir ao Movimento dos Capitães. É que o livro de Spínola, independentemente do seu conteúdo não muito radical sobre a política colonial, acabou legitimar interrogações sobre o fim da guerra. E muita gente, nas Forças Armadas, só aderiu ao golpe porque estava motivada pelo dissídio de Spínola.

Mas imaginemos que, sem o livro, nesse dia do golpe, Costa Gomes era CEMGFA e Spínola vice-CEMGFA, isto é, eram eles a cúpula do poder militar na data do golpe. Como reagiria essa hierarquia militar face ao golpe? 

Sempre se poderia dizer que, de toda a forma, o capitães teriam ido buscar esses dois generais. Mas, nesse caso, sem o "Portugal e o Futuro" a destacar Spínola face a Costa Gomes, sem a cena da entrega do poder no Carmo, seria Spínola a personalidade escolhida para titular o novo regime?

Posso estar enganado mas, sem o "Portugal e o Futuro", estou em crer que Costa Gomes teria sido, muito mais facilmente, a escolha do MFA para chefiar a Junta de Salvação Nacional, como era patente.

Sem o "Portugal e o Futuro", Spínola teria sido Presidente da Junta de Salvação Nacional e, depois, Presidente da República? Acho que não.

Mas a história não se faz de ses, pelo que tudo acabou por acontecer como aconteceu. E, para nos ajudar a compreender o que aconteceu, este livro ajuda-nos muito.

24 de abril de 2023

O meu 24 de abril

Saí de manhã de casa, em Santo António dos Cavaleiros, onde vivia, desde que casara, quatro meses antes. De carro, entrei na Escola Prática de Administração Militar, na Alameda das Linhas de Torres, em Lisboa. Às nove horas, iniciei a primeira aula de "Ação Psicológica", ao meus instruendos. Era aquela a minha tropa.

Pelo meio-dia, recolhi à biblioteca. Além de "oficial de Ação Psicológica" e coordenador do curso de formação de oficiais milicianos nessa especialidade, era também bibliotecário e diretor do jornal da unidade, "O Intendente".

O António Reis bateu à porta. O António, mais tarde um consagrado historiador e professor universitário, era o nosso contacto com os oficiais do quadro, na clandestina articulação que, desde há meses, íamos mantendo com o setor profissional militar.

Conhecíamo-nos desde 1969, ao tempo da articulação da oposição democrática para o ato eleitoral desse ano. Ele tinha tido um papel destacado, como candidato oposicionista por Santarém, eu trabalhara ativamente na Comissão Democrática Eleitoral de Vila Real. Nessas últimas semanas, encontrávamo-nos regularmente na "Seara Nova", a revista oposicionista que, à época, acolhia várias correntes políticas.

Para espanto de muitos e do próprio, António Reis havia sido escolhido, meses antes, para a especialidade de Ação Psicológica, que eu coordenava. A máquina das informações militares, na sua articulação com a PIDE (ninguém dizia DGS), tinha óbvias lacunas. Só há poucas semanas, o Exército mandara "reclassificá-lo", devendo regressar a Mafra, onde o esperava um destino como Atirador de Infantaria. Por esses dias, tentávamos atrasar os efeitos dessa transferência.

Notei que o António vinha com ar grave. Pediu-me para reunir o pequeno grupo de oficiais milicianos que estavam no segredo das movimentações. Minutos depois, informou-nos que o golpe militar, de que há semanas falávamos, estava previsto para essa noite.

Ficámos tensos, confrontados com o peso da informação recebida. Aos pedidos de detalhes que colocámos, no tocante ao âmbito da nossa ação, adiantou explicações vagas. Ele próprio não tinha muitos mais pormenores.

Ao final do dia, quando saí da unidade, não tive dúvida de partilhar a informação com o meu pai, que, vindo de Vila Real, estava de visita a Lisboa. Democrata dos sete-costados, alimentava, contudo, uma desconfiança persistente sobre a capacidade dos militares para derrubarem o regime que ele sempre detestara.

Jantei com os meus pais e com um tio. Foi uma ocasião estranha: se a operação militar que iria decorrer, horas depois, tivesse sucesso, o futuro desse meu tio - um imenso amigo de todos nós, a começar por mim - iria sofrer uma grande mudança. Ele era deputado, por Vila Real, à Assembleia Nacional...

À mesa, apenas eu, o meu pai e a minha mulher estávamos a par do que iria ocorrer, pelo que a conversa, para nós os três, não deixou de ter sempre isso como pano de fundo.

Acabado o jantar, deixei os meus pais na Feira das Indústrias, à Junqueira, onde havia uma exposição de antiguidades. À saída, ao deparar com o Bentley que transportara o presidente da República para a inauguração do evento, o meu pai disse à minha mãe uma frase enigmática, que ela lembraria até ao fim da vida: "Se uma coisa que o nosso filho me disse vier, de facto, a acontecer, amanhã o Américo Tomaz já não volta a entrar neste carro".

Nenhum de nós teve então a presciência de intuir que esse amanhã iria passar a ser conhecido como "o 25 de Abril".

16 de dezembro de 2022

A diplomacia e a defesa da integridade do país

Conferência proferida na Sociedade Histórica de Independência de Portugal, em 24 de junho de 2021, inserida no livro “A Diplomacia e a Independência de Portugal", lançado em 16 de dezembro de 2022

Vale a pena começar o que vos quero dizer dando algumas breves notas relativas ao modo como a nossa estrutura de representação oficial externa foi evoluindo. 

Durante muito tempo, e Portugal não foi exceção àquilo que se passava um pouco por todo o lado, a representação do Estado sediada no exterior era cometida a personalidades da confiança pessoal do titular da soberania. Às vezes, essas figuras eram colocadas numa capital específica, na qual dispunham de alguma eventual influência. Em outras vezes, pela adaptabilidade da suas qualificações ou rede de contactos, entravam em itinerância entre as escassas missões diplomáticas que o país possuía. Nunca parece ter havido, por essa altura, qualquer limite temporal para o exercício dessas funções desses enviados do soberano. 

No início, as elites nacionais relevantes para tal fim eram figuras da aristocracia, com redes de relações, familiares e outras, além de um nível de educação e cosmopolitismo necessário à frequência das cortes estrangeiras. Eram também dessa extração os plenipotenciários que transportavam apalavra do chefe do Estado para as conferências internacionais quando estas ocorriam. 

Não sei se há dados que permitam avaliar se esse papel do enviados externos, escolhidos pelo titular da soberania, era pior ou melhor assumido, até porque o único juiz da qualidade dessas escolhas acabava por ser o próprio soberano, na ausência então de um qualquer outro modo de responsabilização pública. 

Há também que registar a curiosidade, às vezes pouco conhecida, de, por muitos anos, serem os próprios representantes diplomáticos a suportarem o custeio financeiro das missões, o pagamento ao seu pessoal e as suas despesas correntes de funcionamento. A honra e o prestígio de representar o seu rei e o o seu país seriam, talvez, a necessária retribuição para esses gastos.

É muito interessante notar que, mesmo a partir do momento em que o poder pessoal dos reis, na gestão da coisa pública, se foi atenuando, com o fim do Antigo Regime e pela crescente intervenção da representação democrática na formação e alternância dos governos, o papel do enviado diplomático foi mantido, formalmente, vinculado ao titular da chefia do Estado. 

A criação de um corpo profissional, de uma “carreira”, para sustentação funcional da máquina de representação externa do Estado, não significou, durante muito tempo, que a alguma dessas pessoas, desses funcionários, fosse cometida a responsabilidade máxima de titularidade diplomática num determinado posto. Mesmo quando - e lembremo-nos de Eça de Queiroz - começou a haver concursos para a admissão de “bacharéis” para o exercício de funções consulares ou outras, nunca, repito, nunca se colocou a hipótese dessas pessoas poderem vir a exercer o cargo de embaixador. Aos funcionários que eram recrutados para a máquina pública externa competiam funções que eram sempre inferiores às dos titulares diplomáticos de confiança pessoal do chefe de Estado, sempre obrigatoriamente seus superiores. Posso estar enganado, mas creio poder afirmar que, em Portugal, a personalidades oriundas da “carreira” só foram confiadas chefias de missões diplomáticas durante o Estado Novo.

Ainda antes, e com o advento da I República, as figuras da aristocracia que chefiavam embaixadas ou legações foram substituídas por personalidades republicanas, com algum prestígio político ou cultural. Com o rei afastado e os títulos nobiliárquicos abolidos, essa “revolução” teve algo de natural.

Embora a máquina diplomática pudesse já ter alguma profissionalização a níveis abaixo da chefia de missão, acabando isso por representar um laço de continuidade na representação do Estado junto de um determinado país, na prática, por essa época, a embaixada “era” o embaixador. Essa realidade prolongou-se por muitos anos e alguns de nós, que estivemos bastantes anos na carreira, ainda nos lembramos de que alguns postos, sobretudo unidades mais isoladas e menos visíveis, continuavam a ser estruturas quase “unipessoais”.

É também importante notar que as legações e embaixadas, as duas designações de então, eram muito poucas. Com escassas exceções, estavam maioritariamente situadas na Europa, com as mais importantes acreditadas junto das potências relevantes, em que a Santa Sé figurava como tal. 

Daí que a cultura diplomática prevalecente também fosse, essencialmente, europeia. Se repararmos bem, se há algo em que o mundo ainda não se “descolonizou” foi na liturgia diplomática, nesses “rituais de entendimento”, como bem os designou o embaixador José Paulouro das Neves[1], que eram e continuam a ser tributários da tradição diplomática e da prática protocolar criadas na Europa. Esse “esperanto” do relacionamento internacional, de origem europeia, não foi nunca seriamente contestado.

A diplomacia portuguesa, ao longo da sua história, apontou sempre para a necessidade de manter certas embaixadas junto dos “powers that be”, embora as representações consulares, para apoio ao comércio (nesse tempo, a importância do apoio à diáspora estava longe de ser reconhecida como um objetivo), fossem comuns em várias outras paragens. Só com a multiplicação de novos Estados, na segunda metade do século XX, fruto das descolonizações e da afirmação de novas nacionalidades decorrentes da fragmentação de anteriores unidades estatais, foi necessário acorrer a outras geografias para a defesa dos interesses nacionais. 

É nesse período que se constata que a algumas personalidades que faziam parte das estruturas diplomáticas permanentes era dada, pela primeira vez, a possibilidade de virem a chefiar missões diplomáticas - de início, naturalmente, as de menor importância. Para as grandes embaixadas e legações, o modelo tradicional de escolha continuava a prevalecer. 

Durante muitos anos, aquilo a que agora é vulgar chamar de “embaixadores políticos” foi a regra, os embaixadores “de carreira” eram a exceção. Foi durante o Estado Novo que esta relação começou a inverter-se, em que o poder político percebeu que já estava criada uma estrutura de representação externa do Estado de uma qualidade na qual podia fazer confiança. E, dessa forma, foi-se crescentemente dispensando a busca na sociedade civil, em geral na classe política, de outras personalidades para exercer essas funções.

Com a Revolução de Abril, terá havido, inicialmente, uma tentação de preencher a representação externa do Estado com gente “de confiança” da democracia. Há rumores de que, mesmo para níveis intermédios da carreira, houve quem pensasse fazer entrar figuras políticas, com o argumento de que, por anterior impossibilidade de acesso, a uma certa geração havia sido vedado o acesso à carreira. Por outro lado, vozes havia que entendiam que a diplomacia profissional estava de tal modo conluiada ideologicamente com o regime derrubado que era necessário “saneá-la” radicalmente. Nenhuma dessas ideias prosperou. Os “saneamentos” foram muito escassos, o novo regime rapidamente percebeu que, não obstante grande parte da carreira poder ser então tida como conservadora, ela poderia ser reconvertível para o serviço da democracia. E essa perspetiva não só vingou como se mostrou correta.

Constata-se que, ao longo deste quase meio século de vida em democracia, os diversos poderes políticos escolheram um total de 31 personalidades externas à carreira para a chefia de embaixadas. Com naturalidade, a entrada dessas figuras foi mais intensa nos anos imediatamente posteriores a 1974, passando, a partir de então, a significar uma percentagem cada vez menor no conjunto dos chefes de missão. Neste dia em que lhes falo, apenas uma missão multilateral portuguesa é titulada por alguém que não entrou por concurso para a carreira diplomática[2].

Não quero fazer aqui um balanço, que seria algo delicado e polémico, sobre o valor acrescentado que aquele conjunto de figuras trouxe para a ação externa do Estado, bem como para o prestígio do país. Como profissional diplomático, orgulhosamente “de carreira”, nunca tive dificuldade de reconhecer, com a maior franqueza, que houve personalidades recrutadas fora do MNE cuja qualidade acabou por ter consequências muito positivas para o trabalho da nossa diplomacia. Outras, sem deslustrarem, não trouxeram uma contribuição que se possa dizer que não pudesse ser feita pelos profissionais da “casa”. Muito poucas - mesmo muito poucas, felizmente! - se revelaram-se nefastas ou perniciosas para a imagem e serviço do Estado que haviam sido chamadas a servir. Mas assumo a arbitrariedade deste meu juízo global, mesmo sem “naming names”. Um último apontamento sobre este tema: a algumas dessas figuras escolhidas fora da carreira foi, a certa altura, dada a possibilidade de integrarem o serviço diplomático corrente, circulando entre postos, numa total equiparação aos diplomatas “de carreira”.

Gostava de voltar à questão da diplomacia que tínhamos, no final da ditadura. Quando, em 1975, entrei para o serviço diplomático, cerca de um ano decorrido desde a Revolução de Abril, tínhamos acabado de sair de um período extremamente complexo para a vida diplomática portuguesa. Todos sabemos que os tempos das duas guerras mundiais haviam sido muito exigentes para a nossa ação externa. Mas há que convir que, logo após a entrada de Portugal para a ONU, em 1955, o desafio criado pela tentativa de escapar à pressão internacional para forçar a descolonização dos territórios ultramarinos portugueses, num tempo em que as antigas potências coloniais rapidamente desapareciam pelo mundo, criou uma nova e não menos difícil trincheira diplomática. Portugal, um pouco por toda a parte, com apoios declinantes, passou a estar sob uma constante barreira de fogo político, em especial no plano multilateral, mas com incidências, mais ou menos sérias, em algumas dimensões bilaterais. Tudo havia começado com a questão da Índia portuguesa, logo seguida das situações dos domínios portugueses em África, em especial após o início, em 1961, das guerras coloniais.

Nesse muito difícil contexto, e sem trazer para aqui juízos de valor sobre a questão política que servia de pano de fundo, há que reconhecer que a diplomacia portuguesa se portou extraordinariamente bem. A nossa diplomacia fez exatamente aquilo que lhe era destinado fazer, que era levar à prática o mandato que o poder político lhe determinava. Não era à diplomacia que competia questionar a política externa do regime, podendo nós imaginar que, muitas vezes, alguns desses nossos antigos colegas se devam ter interrogado sobre se o que estava a ser feito era aquilo que melhor protegia o que interpretavam como sendo os interesses essenciais do país. Muitos, creio que a maioria, estariam sintonizados ideologicamente com a tarefa diplomática que eram levados a implementar. Outros, em bom número, eram apenas “civil servants” disciplinados. Alguns terão calado as suas dúvidas, porque os tempos políticos não ajudavam ao questionamento das orientações. Uns seriam mais competentes, outros menos. Na globalidade, o trabalho produzido, visto a esta distância, parece ter sido, em termos profissionais, de indiscutível qualidade. Não parece ter sido pela diplomacia que esse Portugal político foi derrotado na sua “guerra colonial”.

Esta dialética entre o exercício da função diplomática e as orientações da política externa leva-me ao ponto a que agora quero chegar: são os diplomatas “produtores” de política externa, nomeadamente num contexto democrático? Podem os profissionais ter como legítimo objetivo influenciar a ação externa do país, embora não tenham atrás de si a legitimidade própria dos atores políticos?

Sempre fui de opinião que os diplomatas não devem considerar-se a si próprios como meros “locutores de continuidade” de uma política externa que lhes é ditada. Entendo que os diplomatas podem e devem aportar, para a reflexão sobre a postura externa do Estado que servem, aquilo que é o fruto da sua experiência, como depositários que são da continuidade de uma cultura de ação política de que são executores, mas também cultores, ao longo dos vários ciclos políticos, na alternância que a democracia permite e promove. Devem, contudo, dar esse contributo dentro das paredes oficiais, cuidando em não serem fautores e potenciadores de divisões públicas.

Estão aqui nesta sala pessoas que representaram o Estado português durante muitos anos. Estou certo que todas elas reconhecem que, ao final de algumas décadas de representação do Estado, todos acabaram por criar uma espécie de feeling sobre o que é o interesse português, independentemente dos vários ciclos de governo.

Ao longo da minha vida de quase quatro décadas ao serviço da diplomacia, fui chefiado por 21 ministros dos Negócios Estrangeiros. Com escassíssimas exceções, nunca senti particular dificuldade em representar a “voz” do Estado, mesmo em ciclos políticos contrastantes. Em algumas circunstâncias, e não foram muitas, discordei da orientação decidida pelo governo de turno, em determinados assuntos. Calei essa discordância, porque entendi não ter o direito de, nesses momentos, tornar pública a minha divergência de opinião. Se então me apetecesse contestar as determinações oficiais, deveria ter saído da carreira e vocalizar a minha posição no exterior. Como essas determinações não foram ao ponto de ofender, no limite, a minha consciência e aquilo que era a minha leitura do interesse português, embora as entendesse flagrantemente erradas, calei-me. Uma delas, como adivinharão, foi a organização da Cimeira das Lajes, em 2003.

Acho que deve fazer parte da nossa postura, como diplomatas, com coluna vertebral e com sentido do interesse público, ter a coragem de dizer sempre ao poder político aquilo que pensamos. Criámos um património de memória e de defesa do interesse do pais. Mas não temos o direito de o impor. Se o poder político entender não aceitar a nossa posição, devemos fazer aquilo que ele determine. É ele quem tem a legitimidade política, por mandato democrático, para nos dar as orientações. Não temos uma qualquer legitimidade que nos permita arrogarmo-nos a ser uma espécie de guardiões do templo. Felizmente, no Portugal democrático, os ciclos políticos não têm trazido mudanças radicais à nossa postura internacional - e isso, vale a pena dizer, facilita-nos bastante a vida.

Um dia, o meu amigo João Rosa Lã, ao tempo em que era embaixador na Haia, referiu-me que a Holanda tinha acabado de publicar um livro branco com uma reforma muito significativa da sua política externa. Pedi-lhe um exemplar, por curiosidade. Não tenho dificuldade em entender que as políticas públicas de um país possam ser objeto de revisão, mesmo que radical. Mas, devo confessar, faz-me uma certa impressão que uma política externa, um quadro de prioridades no terreno bilateral e multilateral, com expressão ao longo de muitos anos, possa ser objeto de uma redefinição drástica, que, de certa maneira, afeta aquilo que já é um certo património histórico do país. Os holandeses não entenderam assim e repensaram, por essa altura, a sua política externa, a sua hierarquia das prioridades, a começar pela rede diplomática e certas políticas que lhe estavam associadas. A verdade é que de um país que, um dia, decidiu promover, pelo mundo, uma mudança do nome pelo qual era conhecido, passando de Holanda a Países Baixos, tudo é possível… Acho, contudo que seria muito difícil para nós, em Portugal, como que “parar para obras” e decidir: «Ora vamos lá repensar a nossa política externa, para ver se o nosso relacionamento deve ser mudado, com este ou com aquele país, com esta ou aquela organização», anunciando isso por escrito! Mas cada um é como é!

Não sei se já se deram conta, mas creio que só há um único elemento que foi preservado na política externa portuguesa, da ditadura para a democracia: a relação transatlântica. Com essa exceção, nenhum daqueles que hoje são considerados os eixos da nossa ação externa - Europa, língua e lusofonia - existia antes do 25 de Abril: a relação com a Europa comunitária era muito incipiente, aquilo que hoje podemos qualificar como o pilar do mundo que fala português não se colocava, obviamente, do mesmo modo. Porém, a prioridade dada à NATO, às relações com o Reino Unido e os Estados Unidos, com as Lajes de permeio, já estava bem inscrita na nossa agenda externa.

Há dias, ao comentar isto, alguém me disse, com um ar muito natural: «É muito simples perceber a razão pela qual isso se passou assim. O 25 de Abril foi feito por militares e os militares portugueses são tributários de uma cultura NATO». Nesse instante, recordei-me do momento, algo bizarro, que havia sido a presença do general Vasco Gonçalves, como primeiro-ministro, numa cimeira da NATO, em Bruxelas. Evidentemente, nós sabíamos que, a Portugal, havia sido retirado o acesso aos códigos nucleares da organização. Mas a presença de tão idiossincrática figura naquela reunião, provava, se tal fosse imperativo, a importância basilar do relacionamento transatlântico, a preservação de um elemento fundamental da nossa postura geopolítica, resultante do lugar do mundo onde continuávamos e continuamos, com ou sem Revolução.

Somos um país antigo e somos um país, em regra, com uma atitude externa bastante previsível. O mundo sabe quem somos e como, em geral, nos comportamos, perante as coisas do mundo internacional. Não está na nossa natureza mudar, radicalmente, de postura externa. A nossa dimensão, aa nossas dependências, bem como a nossa fragilidade relativa não recomendam que isso se faça, com ligeireza. 

Porém, refletir sobre a nossa política externa, questionar serenamente a sua evolução, olhá-la e adaptá-la de uma forma diacrónica, isto é, não pensarmos que “isto é assim e vai ficar sempre assim”, pode e deve fazer-se. Por exemplo, numa área que julgo conhecer bem, o relacionamento com a União Europeia, devemos refletir permanentemente sobre a adequação da nossa atitude a cada tempo, tanto mais que a União, ela própria, muda constantemente de natureza e é importante que meçamos o modo como nos devemos comportar face a essas mesmas mudanças.

Por exemplo, acho que é da maior importância, sem grandes estados de alma, fazermos uma contínua reflexão sobre a nossa política de alianças dentro da União Europeia. E fazê-lo de maneira fria, como todos o fazem: umas vezes estamos com a Espanha nuns dossiês, em outros afastamo-nos, de outras vezes aproximamo-nos da Alemanha, outras da França. A defesa ótima dos nossos interesses a isso obriga e não surpreenderá ninguém que o façamos. Todos o fazem.

Um caso muito interessante, e pouco abordado entre nós, tem a ver com o relacionamento com o Reino Unido. Não quero especular muito sobre isto, mas diria, num caricatura que é um “understatement”, que Londres, por mais de dois séculos, sobredeterminou a nossa postura externa, em termos que chegaram a ser, na prática, de uma quase tutela. 

Creio que em 1987, destacado para uma reunião comunitária sobre questões de desenvolvimento, a ter lugar no Luxemburgo, e perante uma agenda que teria aí uma dez pontos, recebi instruções sobre três ou quatro deles e, quanto aos outros, foi-me dito: «É seguir os ingleses». Devo dizer que, naquele instante, que nunca mais esqueci, como que gelei. Percebi que o “comodismo” diplomático podia ir ao ponto de dispensarmos ter posição própria, talvez por se considerar que os assuntos em causa não eram do nosso interesse direto, pelo que seria prudente seguir a linha de um país cujas posições, em regra, estavam próximas das nossas. 

Os britânicos “raptaram”, durante muitos anos, parte significativa da capacidade decisória portuguesa na área externa, connosco a considerar, numa avaliação simplista, que, ”seguindo os ingleses”, tínhamos basicamente preservados os nossos interesses. Essa atitude representava aquilo que é, precisamente, o contrário daquilo que, mais tarde, aprendi que um país deve fazer na gestão da sua politica europeia: sair da preguiça da agenda egoísta e criar uma filosofia sobre a generalidade dos assuntos, numa coerência global de atitude.

Quando estive colocado na nossa embaixada em Londres, no início dos anos 90, dei-me conta de que comunhão dos nossos interesses com o Reino Unido era apenas, e cada vez mais, um mito. Lembro-me bem das dificuldades com a questão de Timor, em que o Reino Unido estava, quase por sistema, do outro lado da barricada. E, em muitos outros dossiês, salvo em temáticas de política externa e de segurança, em que a questão transatlântica viesse à baila, o nosso afastamento era cada vez mais significativo. Nos anos em que, depois de sair de Londres, tive responsabilidades política na área dos assuntos europeus, em tempos em que Portugal sublinhava bastante a sua postura integracionista, o Reino Unido passou a estar, crescentemente, bem distante das posições de Portugal.

E aqui regresso à questão dos interesses portugueses. Identificá-los, aculturá-los, preservá-los e promovê-los foi sempre uma das grandes preocupações que tive na minha vida diplomática, nela incluindo a passagem pela política.

Quando entrei para a diplomacia, posso agora revelá-lo, era um anti-europeu. E era-o por uma razão muito simples: vinha da esquerda e o setor da esquerda portuguesa de que eu então me sentia próximo não era, por natureza, europeísta. Porém, não sendo comunista, percebi, a certa altura, que a minha postura acabava por ser, nesse domínio, bastante similar à do PCP. E isso não só me incomodou como me levou a interrogar-me sobre a correção dessa minha posição. 

O meu anti-europeísmo de então, vim a constatar, era uma reação epidérmica e algo primária, numa lógica simplista de que, no processo decisório europeu, nunca devíamos partilhar decisões. Devíamos, ferozmente, guardar para nós a capacidade de decidir em tudo quanto nos dissesse respeito. Os interesses portugueses eram sempre melhor defendidos do lado de cá do Caia. Para lá do Caia, os interesses eram outros, só por acaso coincidentes com os nossos. Era uma perspetiva totalmente errada: os nossos interesses são sempre melhor defendidos numa atitude pró-ativa, envolvendo os outros e envolvendo-nos nós mesmos naquilo que são os interesses dos outros. Com o tempo, vim a entender que o conceito de independência, e a capacidade de defender essa independência, têm uma expressão muito diferente no mundo atual. Se há conceitos que mudaram com o tempo, e que dependem muito das circunstâncias, esse são a independência e a soberania. 

Uma vez, nos anos 60, numa aula do então Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, perguntei ao professor Adriano Moreira se, duas ou três décadas depois, ele via como possível que o Ultramar português se tornasse independente. A pergunta era delicada, mas o professor Adriano Moreira teve arte para lhe dar a volta: «Se o meu amigo me conseguir dizer, hoje e agora, qual será o conceito de independência daqui a 30 anos, terei o maior gosto em responder-lhe.» Era uma fuga à questão mas, de certo modo, era verdade.

O que é hoje, para um Estado como Portugal, ser independente? Éramos mais independentes, como Estado, quando éramos um país isolado, “orgulhosamente sós”, durante os últimos tempos do período colonial, em que vivíamos debaixo de uma pressão internacional fortíssima? Ou será que somos hoje mais independentes, mais capazes de influenciar o nosso futuro, quando conseguimos atuar, dentro e com a União Europeia, afirmando-nos em múltiplas dimensões multilaterais? Temos hoje uma maior capacidade internacional ou não? Não tenho dúvidas de que, mau grado novas dependências que entretanto possamos ter criado, a nossa posição no quadro internacional é bem mais confortável do que nesse tempo tenso. E que este novo quadro, se bem que mutante e exigente, é muito mais favorável para a defesa prática dos nossos interesses.

É para mim claro que todos os contextos em que haja dinâmicas que não possamos, autonomamente, controlar, são fautores de riscos - e a participação nas instituições europeias não está isenta de perigos. Um espaço de participação em modelo de partilha de soberania tem sempre dificuldades, agravado, no nosso caso, pela nossa dimensão, pela nossa fragilidade financeira e pelo poder institucional limitado que é o nosso. Talvez por isso continuo, às vezes, a ter algum tropismo soberanista - e tive-o muito claramente quando negociei dois tratados da União Europeia. Nunca consegui ser muito concessionista, nem nunca fui atraído pelas derivas do hiper-federalismo. E continuo a ser adepto, não apenas de reservas de competência nacional muito claras, em áreas de soberania, como na preservação de uma capacidade mínima de influência no processo decisório.

Por essa razão, tive sempre muitas dúvidas, em matéria de revisão instutucional de tratados, na questão da redução do poder de voto no Conselho, em cedências no número de deputados ao Parlamento Europeu, na importância de manter um Comissário. Tive sempre imensas dúvidas em fazer concessões em relação a isso. Tanto mais que sempre vi aqueles Estados que procuram “segurar as rédeas” da União muito interessados em reforçar o seu poder. Se eles, que são, por natureza e pelo seu poder económico e demográfico, muito poderosos vivem, em permanência, mobilizados para garantirem a preservação dessa força, por maioria de razão um Estado menos forte, com mais fragilidades, situado frequentemente fora do mainstream decisório prevalecente em Bruxelas, precisa de preservar alguma capacidade de controlo da sua posição.

Neste bosquejo pela nossa postura externa, como é que a diplomacia portuguesa se tem portado? Acho que se tem portado, basicamente, bem. Sempre? Nem sempre: temos, como é natural, alguns altos e baixos. Vou ser muito franco - e julgo que abro aqui “o livro” de uma forma que ninguém antes fez. Temos gente que trabalha muito bem, como também temos gente que trabalha menos bem. Temos gente que é capaz de defender, com afinco, os interesses nacionais e outra que, não operando contra o interesse nacional, o não cultiva com o afinco com que deveria fazê-lo. Mas, em termos gerais, considero que o país está bem representado e que há hoje uma maior responsabilização, uma maior transparência naquilo que cada um faz, pelo que a meritocracia me parece mais afinada. E isso é bom.

A Europa é disso um bom exemplo. Não teria sido possível a Portugal ter um presidente da Comissão Portuguesa se o nosso país não tivesse tido, ao longo dos anos, dentro da União Europeia, um comportamento altamente responsável, eficaz, com presidências rotativas muito bem executadas, com forte sentido de responsabilidade, com pessoal respeitado, com uma presença muito ativa. Não somos “os melhores do mundo”, mas tivemos sempre, no nosso seio, gente de muito boa qualidade, que ajuda a prestigiar, pelo mundo, o nome do país.

Infelizmente, acho que não temos uma cultura, dentro da carreira diplomática, de permanente reflexão sobre o que são os interesses portugueses e a melhor maneira de os promover. Fica a ideia de que é por “osmose“ que vamos absorvendo o que interessa salvaguardar. Ora essas coisas têm que ser mais discutidas, refletidas, as pessoas têm que estar conscientes de que há uma matriz comportamental que representa os interesses do país. E deve haver maior accountability, consequências negativas para quem não leva as coisas com o indispensável rigor, efeitos positivos nas carreiras para quem é profissionalmente competente. E devemos todos estar conscientes da “linha” que nos compete defender, sem ambiguidades e, em especial, sem “achismos”. Recordo-me sempre de um raspanete que dei a um adido de embaixada a quem, um dia, escassas semanas depois de ele ter entrado no MNE, apanhei, ao telefone, em conversa com uma embaixada estrangeira em Lisboa, a dizer, com total irresponsabilidade, “Portugal pensa que…”

Há países que fazem isso muito bem. O Reino Unido, por exemplo. Vi fazerem isso agora, em tempo de Brexit, num dos seus momentos mais caóticos na sua presença internacional. A diplomacia britânica tem uma consistência e uma constância admiráveis, por mais abstrusa que seja a tarefa que lhe cumpra executar. E, ao contrário de outros países, nunca assisti, em conversas com colegas britânicos, à emissão de opiniões à margem da posição oficial do seu governo. E, acreditem, há muito que aprendi que este é o teste do algodão do profissionalismo.

Ontem, conversava com o antigo embaixador americano em Portugal, Alan Katz - que foi embaixador político, como são a maioria dos embaixadores americanos -, e perguntava-lhe: «Que ordens concretas recebeste, quando vieste para Lisboa?» Ele disse algo curiosíssimo, que eu não sabia: «As nossas ordens são-nos transmitidas pelo staff diplomático, que nos enquadra e que recebe as guidelines do Departamento de Estado. Temos uma linha geral, que representa os interesses americanos para cada país ou organização, mas, depois, é a máquina do Departamento de Estado que dá ao embaixador as guidelines concretas, conferindo desta forma uma coerência global da representação do Estado no país.»

Vamos ser francos: nós não temos, muitas vezes vezes, essa capacidade de coordenação, por forma a garantir uma coerência global de atitude, em todos os setores da máquina diplomática. E não assegurando essa coerência global, houve já pessoas que assumiram, e, alguns postos, atitudes menos responsáveis. Pode ter acontecido, aqui ou ali, um inquérito, mesmo um processo disciplinar, talvez uma transferência para outro local, mas há, entre nós, uma cultura demasiado permissiva e “compreensiva”, perante a incompetência ou a pontual irresponsabilidade. Digo isto com alguma pena: faz-nos falta uma cultura mais densa e exigente, que não ceda ao impressionismo e não se contente com resultados de qualidade média. É que, ao ceder ao facilitismo, estamos a ser injustos para com os outros, com a gente que se esforça, que trabalha muito e bem. 

Um outro ponto que gostaria de referir é que a diplomacia dos dias de hoje não se reduz ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Em algumas áreas que não são questões de pura política externa, há um trabalho no exterior que releva já muito da política interna. O caso mais óbvio é a União Europeia, mas há outros setores multilaterais onde isso é por demais evidente. Por isso, pergunto-me se não devíamos estar mais abertos, na carreira diplomática, a trabalhar e a discutir, mais aprofundadamente, com os outros ministérios. Eu sei que conjugação interdepartamental, às vezes, é difícil. A cultura das Necessidades não está muito aberta a isso. 

Usamos, no MNE, uma expressão para tratar os outros ministérios, que diz tudo: consideramo-los os “ministérios sectoriais”... É uma espécie de afirmação, reconheço que algo sobranceira, de uma função de soberania, que se entende situada no centro da ação do Estado. Há, no MNE, um orgulho em poder garantir que, nas rotações governamentais democráticas, quando chega um novo ministro, ele é servido por dossiês, com pontos de situação, sobre todos os assuntos relevantes, elaborados com todo o rigor e neutralidade política, permitindo ao novo titular entrar nas matérias com garantido conhecimento de causa. Ao que se dizia, mas não sei se é verdade, apenas os Ministérios da Defesa e das Finanças davam idênticas garantias, havendo, em geral, uma maior politização nos restantes “ministérios sectoriais”… 

No nosso caso, tenho a certeza absoluta de que assim se continua a proceder. Em várias mudanças de ciclo a que assisti, e em algumas em que estive envolvido, o novo ministro tem sempre perante si, se quiser, assegurado pelo quadro diplomático e técnico em funções, uma expressão escrita e fiel daquilo que são os interesses portugueses que foram decantados ao longo desse tempo e um bom retrato das questões sobre as quais terá de decidir.

É muito bom, na política externa, não haver descontinuidade. Os diplomatas portugueses sabem que, por regra, as grandes linhas de política externa não se alteram. A imagem do país sai prestigiada deste facto. 

Vou contar uma história que se passou comigo. Em 2011, precisamente no dia da posse do dr. Pedro Passos Coelho como primeiro-ministro, eu tinha marcada uma ida à Comissão dos Negócios Estrangeiros do parlamento francês, para fazer uma exposição sobre a política externa portuguesa. Umas dias antes, tendo em conta que em Portugal tinha havido um “terramoto” de natureza político-partidária, o presidente da comissão telefonou-me perguntando se eu não queria adiar, para poder ter tempo para olhar para o novo programa do governo. Tive então o desplante, e o prazer, de lhe poder dizer: «Não, por mim, não quero adiar. Irei, nesse dia, explicar à sua Comissão as linhas essenciais da nossa política externa, porque tenho a certeza absoluta de que o que eu irei ali dizer será confirmado pelo novo governo. Nós não mudamos de política externa, no que são os seis eixos essenciais, quando mudamos de governo». Já aconteceu foi mudar-se o embaixador. Mas essa, embora rara, é outra história…

A continuidade virtuosa na ação externa tem, contudo, algumas nuances. O meu último posto foi como embaixador em Paris. Fui para lá em 2009, em tempos de business as usual, em termos da vida do nosso país e, por isso, também da sua ação externa. Nos dois primeiros anos, assim foi. Criaram- se novos consulados honorários, procurei assegurar mais leitorados para as universidades, mais professores para o ensino do português para os filhos dos portugueses, maior eficácia em toda a máquina do Estado que me competia supervisionar. Um dia, em 2011, rebentou a crise financeira. Tudo mudou. Houve a troika, as restrições orçamentais. Os apoios tiveram que ser reduzidos, os salários cortados, menos pessoal, menos professores, enfim, uma onda restritiva, com efeitos negativos no funcionamento e na eficácia dos serviços. O embaixador era o mesmo. Com a mesma cara com que, antes, dava conta de várias iniciativas positivas e otimistas, que exigiam recursos de toda a natureza, tive que passar a “vender” políticas de sinal oposto, restritivas, perante caras indignadas de compatriotas nossos, que achavam que estavam a ser “ofendidos” pelo Estado. Este, confesso, foi um tempo muito complexo, que marcou a última metade do meu mandato em Paris. 

Nessa altura, fui também chamado a assegurar, cumulativamente, a chefia da representação na Unesco, passando a ter uma dupla tarefa que era muito difícil de assegurar. Mas era o serviço do Estado. E o Estado era o mesmo. Quem o titulava era um governo diferente, mas com legitimidade democrática indiscutível para decidir essas drásticas mudanças. A nós, podendo recomendar algumas decisões, apenas nos competia fazer, tão bem quanto possível … às vezes, coisas radicalmente contrárias às que, no passado, também nos tinham competido. É assim a condição diplomática. Cada um de nós tem de ser, como se dizia de Thomas More, A man for all seasons. 

A diplomacia portuguesa, ao longo dos tempos, tem dado mostras de ser um corpo de grande lealdade ao serviço público, com profissionalismo, patriotismo e elevado sentido de Estado. A diplomacia não tem, necessariamente, de ser vista como um exercício de cinismo, por poder ser vista a levar à prática políticas de sinal diverso. Somos executores de um exercício de responsabilidade e de representação de interesses nacionais, devendo acompanhar aquilo que os ciclos políticos e a vontade que eles legitimamente expressam. Fazê-lo bem, com sentido patriótico, é a vocação da nossa profissão. No que me toca, considero ter sido um imenso privilégio poder desempenhá-la durante quase quatro décadas.






[1] Paulouro das Neves, José César, Rituais de Entendimento, Teoria e Práticas Diplomáticas, Apontamentos, Instituto Diplomático do MNE, Lisboa, 2011


[2] António Sampaio da Nóvoa, representante permanente de Portugal junto da Unesco (2016-2021)

3 de março de 2022

O que é que correu mal?

Passaram já 30 anos. A nacionalidade dele era inglesa. A sua ascendência, pelo nome, era de muito longe dali, de um país báltico. Estávamos em Londres, na “Chatham House”, o instituto britânico de relações internacionais, num intervalo para café, durante um seminário onde se discutia algo que tinha a ver com o fim da União Soviética, que tinha ocorrido poucos meses antes. Era o primeiro semestre de 1992. 

“Eles não vão esquecer. E vão voltar, mais violentos do que antes. Nós conhecemo-los bem”. O meu interlocutor não tinha ilusões quanto aos russos. “Moscovo”, para ele, era o poder que tinha esmagado a sua nacionalidade originária. Uma coisa tinha ele por certo: a nova Rússia nunca seria democrática, por muito que tentasse fazer passar-se por isso. E olharia sempre para a sua periferia com um misto de arrogância, de desconfiança e desejo de fazer voltar as coisas atrás. 

Quatro anos depois, em Varsóvia, fui visitar o chefe da diplomacia polaca, Bronislaw Geremek. Um curto encontro de cortesia transformou-se, de um momento para o outro, numa longa lição de História, quando estimulei a sua opinião sobre a evolução da nova Rússia. 

A Polónia, por essa altura, ainda não fazia parte da NATO e da União Europeia. A fé de Geremek na capacidade de regeneração democrática do regime russo era basicamente idêntica à do meu anterior interlocutor de Londres. “Historicamente, a liberdade não mobiliza os russos. A alma da Rússia é a autoridade”. 

Por estes dias, lembrei-me de uma outra frase que o MNE polaco então me disse: “O futuro da Ucrânia é a grande preocupação da politica externa da Polónia”. Na altura, achei aquilo algo excessivo. Olhando o mapa e o correr dos tempos, percebi. O papel axial que Varsóvia tem vindo a desempenhar na tentativa de ancoragem da Ucrânia ao mundo ocidental está na linha dessa preocupação.

Ao longo da vida, tive a sorte de conseguir falar, sem a capa das conversas oficiais, com gente de quase todos os países que foram gerados pela implosão da União Soviética, bem como de quantos dela havia sido parceiros no mundo do “socialismo real”.

A atitude face à Rússia de todas essas pessoas não foi a mesma, mas tinha quase sempre um ponto comum: a ideia de que lhes era essencial reforçar as respetivas nacionalidades, como forma de evitar que uma pulsão centrípeta de Moscovo pudesse fazer voltar atrás o relógio da História. Naqueles que partilhavam a nossa geografia continental, vi uma vontade, praticamente unânime, de integrar as instituições europeias e euro-atlânticas, como escudo para o futuro.

Muitas vezes, confesso, impressionou-me a imediata acrimónia que alguns exalavam quando o nome da Rússia vinha à baila, dando comigo a reagir intimamente ao que interpretava com um exagero nacionalista. Com o tempo, contudo, fui dando por adquirido que é praticamente impossível colocarmo-nos no lugar de quantos passaram por experiências históricas de grande dimensão traumática.

Nas poucas ocasiões em que estive na Rússia, em conversas fora dos circuitos oficiais que consegui ter, ou com russos que fui cruzando pelo mundo, mantive sempre uma imensa curiosidade em tentar perceber como viviam os seus novos tempos. Anotei o quase embaraço como, às vezes com grande humildade e até algum esforçado humor, me relatavam as desventuras da sociedade russa contemporânea, quase sempre sem apostarem uma grande esperança num melhor futuro. Raramente lhes consegui arrancar elogios a Gorbachev, sentia-os hesitantes a valorizarem Yeltsin, notei-os sempre divididos quanto a Putin. Mas todos reconheciam que era neste último líder que muitos dos seus compatriotas depositavam alguma esperança. E que daí vinha muito da força de Putin.

O fim da distensão

Passaram já 20 anos. Quando, em 2002, fui para Viena dirigir a então presidência portuguesa da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) sabia que a Rússia constituía, com os Estados Unidos, o “duopólio” que determinava o andamento da organização. 

Vinha de Nova Iorque, de uma cidade marcada pelo recente “11 de setembro”, tragédia que, por algum tempo, tinha feito abater bandeiras no seio da ONU, onde eu era embaixador. Portugal fazia ali parte da “troika” de observadores do processo de paz em Angola, precisamente com os EUA e a Rússia. O último almoço a três que tinha organizado em minha casa correra num ambiente simpático. O convidado russo chamava-se Sergei Lavrov.

O ambiente que fui encontrar em Viena tinha uma tensão bem maior, polarizada nos representantes dessas mesmas duas potências. 

Como tínhamos chegado até ali? O que é que tinha corrido mal?

Nos anos 70, entre o mundo ocidental e a União Soviética, dois poderes que, por décadas, tinham mantido entre si uma forte rivalidade militar no quadro da Guerra Fria, de paralelo com um esforço de proselitismo dos seus projetos à escala global, havia começado a desenhar-se o terreno de algum diálogo. 

Em 1975, como saldo desse esforço diplomático de aproximação, foi assinado o Ato Final de Helsínquia, um texto de compromisso, com medidas geradoras de confiança entre as duas partes, recheado das ambiguidades semânticas com que os diplomatas conseguem ganhar tempo e, às vezes, alguma paz. 

Ironicamente, para nós, portugueses, 1975 seria precisamente o ano em que, na nossa política interna, se viveu um “Leste-Oeste” e, em algumas das nossas antigas colónias, a Guerra Fria continuou acesa.

O declínio da URSS, como potência, foi-se acelerando, desde então. Incapaz de sustentar a rivalidade económica e tecnológica com os EUA, o poder soviético entrou em crise e, em 1991, o país implodiu, dando origem a 15 Estados diferentes.

A ordem liberal parecia ter uma passadeira à sua frente, mas o “fim da História”, prognosticado por quem não percebe que dela nunca nos libertamos, era um falso bom alarme. 

Moscovo tinha passado, entretanto, a capital do país sucessor da URSS, a Rússia. Era um Estado herdeiro daquele outro que fora visivelmente derrotado pelos EUA, numa Guerra Fria onde ambos os lados só tinham combatido através de terceiros, em zonas de confluência dos respetivos poderes. 

O inesperado “flirt” da nova Rússia com o mundo vencedor foi breve e, quase sempre, algo equívoco. Os EUA terão prometido à Rússia que a NATO, depois do Pacto de Varsóvia ter sido dissolvido, se não expandiria para Leste. Não foi isso que veio a acontecer. Porém, a verdade é que a Rússia à qual o ocidente fizera essa promessa também já não era exatamente a mesma. 

A Rússia era agora Vladimir Putin, um homem que terá concluído que tinha mais vantagens em ser temido do que em ser respeitado. O seu poder, quase unipessoal e democraticamente mais do que duvidoso, deu razões à sua vizinhança imediata a Oeste para se manter “de pé atrás”, quanto ao futuro. E esses países procuraram atenuar os seus receios com a obtenção da integração na NATO e na União Europeia. 

Voltemos a Viena, a esse ano de 2002. A OSCE, a que Portugal presidiu durante esse ano, tinha sido o porto de chegada do laborioso processo de distensão entre o Leste e o Oeste. Mas muita água tinha corrido entretanto sob as pontes do Danúbio. Longe se estava já dos dias em que o diálogo fluía, a confiança era ainda possível e tudo parecia encaminhado para um futuro de cooperação. Pelo contrário, as tensões eram cada vez mais fortes.

A Portugal, que era e é conhecido como um eficaz “honest broker”, competia procurar conciliar as leituras da realidade política internacional que ia “de Vancouver a Vladivostok”, como então se dizia. Sabíamos que havia por ali duas culturas de segurança em evidente contraste: um mundo que era chamado de “a Oeste de Viena” que a Rússia acusava de querer, cada vez mais, dar lições de democracia aos países “a Leste de Viena”. Moscovo era o óbvio “protetor“ de quantos eram vistos como infringindo o “template” democrático, dos Balcãs à Ásia Central, passando pelo Cáucaso. 

Nesse ano de 2002, no Porto, em dezembro, todos os então 55 países membros da organização subscreveram os mesmos textos, preparados por nós. Colocar Washington e Moscovo de comum acordo numa perspetiva sobre conflitos e outras situações de instabilidade foi obra! Nunca esse entendimento voltou a ser reeditado na história da OSCE. 

Voltei à OSCE, em duas ocasiões recentes, a última há menos de um ano: o ambiente da relação entre Washington e Moscovo, inquinado pela conjuntura pareceu-me já dificilmente insuperável. A atual situação só confirma isso.

E agora?

No momento em que escrevo, não faça a menor ideia de que forma a situação internacional, decorrente da invasão russa da Ucrânia, evoluirá.

Uma coisa tenho por certa: alguma aquietação da crise atual acabará por fazer-se, com um saldo final, justo ou injusto, em que uns pagarão mais custos do que outros. E também sabemos que daí decorrerão ressentimentos, que irão adubar o futuro, nem sempre num sentido positivo.

A História sempre nos mostrou que, por maiores que tenham sido as tragédias ocorridas entre os Estados, o tempo tende, em geral, a desaguar em tempos de alguma acalmia E que, cedo ou tarde, irão surgir “pontes” entre os adversários de hoje, por necessidade da acomodação mútua.

A alguns, pode parecer chocante, num tempo de mobilização emocional como a que se vive, estar a sublinhar a necessidade da restauração do diálogo diplomático entre o ocidente e a Rússia, com Putin ou com outro líder no Kremlin.

A geografia, contudo, tem determinantes que forçam sempre a realidade. A Rússia, seja ela o que vier a ser, nunca vai deixar de ser vizinha desta Europa. Um lado do continente a que as últimas décadas, somadas aos acontecimentos iniciados em fevereiro de 2022, tornou ainda mais coeso dentro de si, quer na sua aliança militar, quer na interligação económica que as instituições comunitárias potenciaram. 

Quando haverá condições para re-inaugurar uma nova “détente”, envolvendo Moscovo, é impossível de prever. Mas como sempre aconteceu na História, a hora da diplomacia acabará por chegar.

(Artigo publicado na revista Visão, em 2.3.22)

19 de junho de 2021

Guterres

Há cinco anos, quando António Guterres tomou posse do cargo de secretário-geral da ONU, senti um imenso orgulho pela circunstância de alguém com que tinha trabalhado de perto, cujas excecionais qualidades havia tido o ensejo de apreciar e admirar, ter ascendido à mais relevante posição no quadro multilateral mundial. 

Fui um entusiasta dessa candidatura, por três básicas razões. 

A primeira é que acho que, salvo alguns momentos menos felizes, o Portugal democrático, nos seus diversos ciclos políticos, tem sabido ser fiel aos grandes princípios e valores que fazem parte do acervo civilizacional coletivo dos mundos de que o país decidiu pertencer, que a diplomacia permitida pela Revolução de Abril ajudou a construir. A chegada de um cidadão português àquele lugar de topo no sistema de regulação internacional, por evidente mérito e não por combinas de lóbis e jogos de poder, representava uma prestigiante consagração para Portugal e para a sua diplomacia.

A segunda razão tinha a ver com o próprio António Guterres. A política é uma atividade dura e, muitas vezes, injusta para os seus atores. Fiz parte, com grande orgulho, dos dois governos chefiados por António Guterres. No termo desses dois ciclos, dei-me conta de que a retribuição, no imaginário nacional, face ao esforço feito por António Guterres para contribuir para uma transformação serena e não confrontacional do país, havia sido escassa. Guterres provou depois, no excecional trabalho feito na área dos refugiados, a consistência de um pensamento solidário e de um elevado sentido de responsabilidade moral. A sua escolha, transparente e indiscutível, para as Nações Unidas, foi um corolário de justiça.

Finalmente, conhecendo um pouco das Nações Unidas, por lá ter trabalhado e por acompanhar com alguma atenção a sua evolução, mas igualmente por ser um “militante” do multilateralismo, achei que uma figura como António Guterres representava, à perfeição, aquilo que a organização necessitava, em especial no tocante à sua adaptação a agendas de modernidade - menos retóricas e mais práticas - que lhe permitissem ganhar legitimidade e espaço de mobilização das opiniões públicas.

A estas três razões positivas, somava-se uma preocupação forte: o risco de que uma evolução negativa dentro do país-chave para os sucessos ou insucessos da ONU, os Estados Unidos, pudesse vir fazer correr à organização estaria melhor protegido com alguém que lhe soubesse preservar os princípios e servisse de escudo ético a qualquer instrumentalização ou desvirtuamento. Isso aconteceu, com Trump. Guterres foi o líder da “resistência”.

Agora, o sentido aclamatório que acolheu a reeleição de Guterres prova o acerto da anterior decisão. Os sinais que chegam de Washington a Nova Iorque são positivos, embora a experiência nos deva tornar prudentes quanto a um excessivo otimismo. Se Biden vier a ser o que parece ser, com Guterres na chefia da ONU, não obstante um tempo turbulento que se aguarda no cenário confrontacional global, o mundo fica muito mais seguro.

OSCE, Viena

 Intervention of Ambassador Francisco Seixas da Costa Former Chairperson of the OSCE Permanent Council, Portugal 13th Meeting of the OSCE IWG Structured Dialogue in Capitals Format Vienna, 

17 June 2021

Excellencies, Ladies and Gentlemen

It is for me a great honour – but also a great pleasure – to be invited to address this meeting of the Informal Working Group of the Structured Dialogue in Capitals Format, under Spanish Chairpersonship. I want to thank Ambassador Luis Cuesta, Permanent Representative of Spain, for his kind invitation to be here today.

I hope my viewpoint will complement the rich and interesting interventions of Dr. Ian Anthony and Mr. Andrei Vorobiev, a fellow colleague of profession.

In 2016, I had the privilege to address a joint meeting of the OSCE Forum for Security Co-Operation and the Permanent Council and to reflect on the 20 years of the Lisbon Framework for Arms Control. I saw then the genesis of what is now the “Structured Dialogue”. Now, I have the chance to see what was achieved so far and, hopefully, what are the paths lying ahead.

I have to say this is a matter of great interest to me as the OSCE is an important part of my life. This is an organisation whose relevance I never failed to stress, whose contribution to international peace and security I have always endeavoured to highlight.

Excellencies, Ladies and Gentlemen,

As a disclaimer, let me stress these are my own viewpoints. These are the perspectives of someone who no longer represents the Portuguese Government, but who deeply enjoyed his work in OSCE, that tries to keep track of the international agenda and, with modesty, believes he may have something to share with you.

Dialogue is the key of politico-diplomatic relations, as everybody knows. 25 years ago, when the OSCE Lisbon Summit took place, it seemed that dialogue was possible everywhere. CSCE had just become the OSCE and several documents and agreements were reached: the CFE Treaty, the Open Skies Treaty, the Vienna Document and its updates – and I am just referring to elements of the politico- military dimension, which is the main focus of our attention today. Important bridges between East and West were being built. The talk about “East and West of Vienna” was not used as it is now...

In the 90’s there were “winds of change” that everybody looked at windows of opportunity. I stress “everybody” because it was quite clear that all sides shared that perspective, even looking from different geographies. We got the impression that a new spirit of international co-operation was there forever. The Cold War was over and everything seemed possible. Looking back, we need to understand that we were too optimistic. Even naive...

Focusing on the OSCE and the matters at hand, I am glad we seized such opportunities, but I regret they did not hold as they should have.

Nonetheless, the doors are always open.

The first main takeaway from that period is that we should explore an chance when it is presented to us. The 90’s were certainly a golden opportunity, but we should not think in dichotomic angles: opportunity and no opportunity. It is more like a continuum.

But let’s start by being realistic. The reasons for the current statu quo are to be found not here, in the Hofburg, but outside. The OSCE is not an “object” that floats in the outer space... This organisation reflects the “state of play” in terms of the strategic relationships that are projected in today’s world.

I would like to remember the suspicion and disagreement of the 70’s. The CSCE process was possible and a decisive institutional step, with the OSCE, was taken.

Were the circumstances better at that time? Was it a window of opportunity? Or did we have a different kind of window?

I learned one important lesson in the decades I worked in international affairs, from the United Nation to the OSCE: if there is something we can do, even at a smaller scale, to improve security, stability and predictability we should grab it.

As I understand, much of the discussions in this forum have been revolving around transparency, risk reduction and incident prevention. Is this as ambitious as we had in the past? It does not seem so. But is it relevant? I would say it is.

A second takeaway would be notion of understanding, essential to achieve common results. It was easy for us to understand each other or it did make more efforts to do so?

The goal of the Spanish Chairpersonship of this forum, to increase common understandings, goes, in my view, precisely in the right direction. Five years ago, I remember I quoted here several passages from the Lisbon Summit Document. I will not read them again, but I would ask again the same question I did before: “Are we sure that we would be capable, all of us, to recognize ourselves under those common banners?”

I understand that some of us consider that the security balance is not exactly what it was. With different perspectives we may agree the things are not what they were. But our responsibility is to show our good faith and implement our previous commitments.

The only way to do that is to confirm what we signed up to. And that does not preclude the possibility of having a discussion about it. Apparently, some partners read things in a different way. They consider that the strategic balance changed, and the commitments need to be revisited. I think a discussion around those commitments may be made, but until that discussion is concluded we need to abide by what was subscribed. These are the rules of any kind of agreement in good faith.

It is evident that the achievements of the 90’s did not hold as we envisaged. It is also evident that the erosion of our common security architecture has continued since the last time I was here. I recall:

• The CFE Treaty continues without fulfilling its potential;

• The Vienna Document modernization remains to be achieved, despite the mismatch with the military structures’ evolution;

• The Open Skies Treaty is faced with withdrawals.

You know this by heart, but I could not fail to stress it.

Can we blame the Lisbon Framework for Arms Control? Sometimes I ask myself this question. And my answer is no. We can think about the Framework as some kind of “Constitution” for arms control (the OSCE itself has different “constitutional” texts): it spells out the fundamental principles, but it needs laws to be further implemented and detailed. Needless to say, such laws need continuous review and update. So, as the Framework retains its validity and relevance, the answer is no, in my view it should not be blamed.

Common will to address the current security situation is paramount. I would stress the political will. However, by no means I diminish the so-called “technical level”, of both diplomats and military.

During the Lisbon Summit I was a member of the Portuguese government, with responsibilities in the European affairs. And I remember the importance of the “technical” input in our discussions and how this was relevant for our achievements. In the politico-military sphere, such knowledge is not less relevant. I would say the contrary.

Dialogue is the DNA of diplomatic services. So, in principle, it should not be a particular feat to engage in such activities. But we need to think about the progress the international community did in bringing the military establishments to cooperate with each other in order to avoid the risks of war and preserve peace. The reduction of the relevance of the military factors in European affairs was the major common victory we have achieved in the previous decades and the OSCE was decisive for that. This was an outstanding achievement which contributed to the transparency and predictability, with positive effects in the security across the whole continent.

Despite the great accomplishments of the past we must accept the reality that a great divide prevails today in the OSCE. I repeat what I said earlier: the reasons for that need to be found elsewhere, and we all know what is at stake.

But the past experience proved that it is in everybody’s interest to preserve the “acquis” of OSCE. Some believe there is no room for improvements in our confidence and security building measures unless the rights conditions are place. If we “wait for Godot” we may lose the timing.

Others refer to the importance of taking concrete steps to have the desirable trust and confidence.

At the same time, disagreement on the root causes of conflicts remain.

We need to give dialogue a chance. The OSCE remains an irreplaceable platform for dialogue and for the creation of a common culture in security and co- operation. I remember I had that idea in 1996. I confirmed it in 2002, when I chaired the Permanent Council – and I must say I still feel proud when I remember that it took me many hours to reach the Porto agreements, including the political declaration, the last to reach consensus at ministerial level. I recall many people warned me that this was not possible. With political will and some sense of compromise I proved them wrong. We all prove them wrong.

I know things are now different from what they were 19 years ago. But we remain seated around the same table, even if not in practical terms today. That proves that we still consider OSCE has an important role to play.

Not to agree to talk openly about the basic issues which are at the core of this organization may condemn it to irrelevance, which, I think, is in nobody’s interest.

Our ultimate goal, we need to remember everyday, is not arms control. This is only a tool. Our essential goal is to maintain peace and stability. And we cannot fail on this.

Thank you very much for your attention.